Das cores de Romero Britto a Michel Teló: existe cultura 'made in Brazil'?
Dizem que foi numa noite chuvosa de 1939 que o mineiro Ary Barroso (1903-1964) escreveu os versos de "Aquarela do Brasil", aquela que se tornaria uma das mais conhecidas canções brasileiras de todos os tempos. O samba-exaltação ganharia o mundo nas vozes de Carmen Miranda (1909-1955) e Frank Sinatra (1915-1998) e seria regravado por outros expoentes da música como Caetano Veloso, Gal Costa e Elis Regina (1945-1982).
Oitenta anos depois, essa cortina do passado segue aberta, e a arte brasileira tipo exportação segue popular. Do colorido das frutas na cabeça de Carmen Miranda à arte de Romero Britto, o que mudou? Há artistas brasileiros de todos os espectros — muitos deles, respeitados ao redor do globo. Mas a arte que recebe o selo imaginário de "Made in Brazil" segue sendo feliz, festiva, sensual e tropical.
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"No Brasil, o conceito 'tipo exportação', de uso popular e comunicacional, passou a ser uma referência de qualidade e de excelência, de algo que merece a apreciação 'até em outros países'. Nesse aspecto, os ativos culturais mais reconhecidos e exportados estão principalmente na música popular, incluindo a dança, sem dúvida", afirma ao TAB o pesquisador de culturas populares e músico Alberto Tsuyoshi Ikeda, professor da USP e consultor da cátedra Kaapora: da Diversidade Cultural e Étnica na Sociedade Brasileira, da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
Esse soft power teve diversos arroubos históricos, sobretudo a partir do começo do século 20. Os modernistas do movimento de 1922 foram um indiscutível marco. "A Semana de Arte Moderna inaugurou um momento novo para as artes e a cultura brasileiras, abrindo um diálogo com o universal sem perder de vista a particularidade da formação", analisa o sociólogo Rogério Baptistini, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie. "A partir daquele momento, temas e problemas locais ganharam expressão mais cosmopolita e passaram a incorporar um público mais abrangente, para além das nossas fronteiras. O Brasil moderno começa aí e se encontra com o mundo."
Os artistas modernistas tentaram mergulhar nos interiores do país para buscar uma essência de brasilidade — mesmo diante de toda a impossibilidade do plural que é nosso caldo cultural. O escritor Mário de Andrade (1893-1945) fez trabalho de antropólogo ao pesquisar a cultura nacional — seus diários de viagem foram públicas no livro "O Turista Aprendiz". A pintora Tarsila do Amaral (1886-1973) buscou referências em uma viagem "de redescoberta do Brasil", em 1924. De suas observações e dos comentários do escritor franco-suíço Blaise Cendrars (1887-1961) vieram os bichos, as cores e a tropicalidade de sua arte, conforme contextualiza ao TAB a crítica de arte Aracy Amaral, professora de história da arte da USP (Universidade de São Paulo). "Então houve o sucesso na exposição em Paris, realizada em 1926", prossegue a professora.
Aos poucos, o carnaval vai se consolidando como um produto capaz de sintetizar a cultura brasileira. Ikeda ressalta que o "brazilian carnival" se tornou um ativo, a referência "de cultura, de musicalidade, de arte, de alegria brasileira".
Do fim dos anos 1930 até a década de 1950, essa imagem colorida do Brasil ganhou uma embaixadora no showbiz americano: a cantora luso-brasileira Carmen Miranda, com muito "Tico-Tico no Fubá" e suas frutas na cabeça. "O cinema a projetou internacionalmente", pontua Ikeda.
A imagem brasileira no mundo se consolidaria como pujante e colorida, a partir dessa salada de frutas, do doce balanço a caminho do mar e da Bahia sensual de Jorge Amado (1912-2001), passando pelos tropicalistas e chegando até as cores das obras de Romero Britto.
"O sucesso internacional talvez se deva ao fato de essa produção estar associada à imagem que o Brasil tem no exterior, ou seja, a de um país alegre, colorido, carnavalesco e, ao mesmo tempo, superficial, exótico e não sério", define ao TAB a professora de história da arte Márcia Iabutti, da escola Cultural Prodesign.
"Os exemplos atuais são bem típicos, característicos da forma como a Europa e, em geral, os países de 'primeiro mundo' encararam o Brasil: o país tropical, do lugar caloroso", avalia Amaral. "É por isso que esses artistas expressam, de alguma forma, o 'clima brasileiro', mesmo que seja falso aqui dentro. É o que faz sucesso lá fora." Para ela, os estrangeiros sempre procuram em nós o curioso, o diferente. "É inútil [tentar mudar isso]. Nosso perfil é o 'tropical'. Assim sempre ficaremos", acredita.
Autor dos livros "O Mistério do Samba" e "O Mundo Funk Carioca", o antropólogo e pesquisador musical Hermano Vianna pede cuidado com generalizações. "É preciso encarar a complexidade", diz ao TAB. "Há os que fazem sucesso internacional comemorado aqui também. Cada caso é um caso: agora mesmo, acho que há torcida para que a [cantora] Anitta vire estrela global."
Diferentes públicos, diferentes guetos
Das críticas a um Paulo Coelho — traduzido para 82 idiomas e com mais de 320 milhões de exemplares vendidos em todo o mundo — à popularidade global do "Ai Se Eu Te Pego", há todas as tonalidades culturais de um país continental de 210 milhões de habitantes, esculpido e ainda sendo lapidado a partir de um caldo plural de imigrações e miscigenação.
Paulo Coelho, por exemplo, não é um Jorge Amado — no sentido de se apropriar da brasilidade. Seus livros fazem sucesso pela temática mística. Paulo Coelho poderia ter nascido em qualquer outro lugar do planeta e ainda assim seria um best-seller.
Michel Teló embarca na fórmula dos hits, aqueles sucessos instantâneos que dominam as rádios e, meses depois, são esquecidos. E Romero Britto, ao seguir reproduzindo um modelo de pop art, cai no gosto porque suas obras não perturbam — pelo contrário, enfeitam e agradam.
Ikeda tem uma explicação para tais sucessos. Para ele, o mérito de tais artistas está na maneira universal com que conseguiram estruturar suas criações, seus temas e suas expressões. O resultado são obras prontas para serem consumidas por um "mercado globalizado".
Já houve um tempo no Brasil, por exemplo, em que havia orgulho da cultura sexista e racista — foi a era da objetificação da mulata. Um verdadeiro embaixador dessa ideia foi o radialista, empresário e apresentador de TV Osvaldo Sargentelli (1923-2002), que se autodenominava mulatólogo. "Com o tempo, mais recentemente, esse tipo de 'marca' identitária brasileira foi sofrendo contundentes questionamentos dos movimentos feministas e negros. A 'mulata exportação' era, evidentemente, uma falsa exortação à mulher, sob domínio machista, de banalização e objetificação das dançarinas, sobretudo as negras, o que muito contribuiu para a imagem depreciada, de objeto sexual, das mulheres brasileiras no exterior", explica Ikeda.
Para Baptistini, nem tudo que reluz é dólar. "Os artistas que ganham muito dinheiro são vítimas desse processo", contextualiza. "Suas obras não são avaliadas pela qualidade intrínseca e, tampouco, estão fundadas numa autêntica e robusta cultura pública. São objetos de consumo, simbolizam muito mais a mercantilização absoluta da vida numa sociedade não integrada."
Romero Britto que o diga. Suas criações são autorizadas em galerias de Miami a Veneza — e têm cópias piratas em camelôs em tudo que é lugar. "Ele faz sucesso no Brasil e no exterior com uma série de 'estampas' inspiradas em um movimento artístico de quase um século, a pop art, exaustivamente repetidas há mais de 20 anos, sem nunca ter proposto nada de novo ou mostrado qualquer sinal de evolução", critica Iabutti. Para ela, as criações de Britto não passam de "suposta arte puramente comercial".
Para Ikeda, não ocorre lá fora o desmerecimento classista que ocorre no Brasil — às vezes um tipo de censura e até preconceito social, e o possível sucesso pode se dar a partir de outros parâmetros. "Em países da Europa, por exemplo, desde os anos 1980, há uma busca pelo exótico em novas referências estéticas do mundo.
Baptistini acredita que há uma raiz sociológica em tudo isso. Há que se pensar em um problema de origem que atormenta os brasileiros: quem somos? "Não somos o 'outro', o 'comunista' das falas do presidente Bolsonaro, o 'negro', o 'índio', as 'feministas'. Se fizermos uma subtração, eliminando tudo o que não somos, sobrará o que somos. E eu pergunto: é isso que fará o milagre, é isso que deve ser valorizado?"
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