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Todo fotógrafo é artista? O que transforma a imagem em um objeto de arte

"Uma boa piada", foto de Alfred Stieglitz (1887) - Wikimedia Commons
'Uma boa piada', foto de Alfred Stieglitz (1887) Imagem: Wikimedia Commons

Julia Flores

Do UOL

19/08/2020 12h03

Uma das características que diferenciam um novo celular de um modelo mais antigo é a qualidade da câmera. Com a evolução dos smartphones, qualquer usuário pode produzir uma imagem de alta resolução em poucos cliques. Mas isso não transforma todo mundo em fotógrafo. E nem todo fotógrafo é artista.

Quando o primeiro equipamento fotográfico surgiu, no século 18, as imagens produzidas eram usadas apenas como um simples registro da realidade, sem nenhuma intenção artística. Mas elas tiveram sua importância: foram esses primeiros registros que permitiram que pintores, antes presos a obras de natureza e retratos, pudessem explorar trabalhos mais criativos e sentimentais em suas telas.

Hoje, é consenso que a fotografia introduziu um "incômodo" entre os artistas. Para começar, ela é uma revolução do olhar: registra movimentos, cores e detalhes da vida que não eram assunto das artes plásticas até aquele momento.

Foto e vida moderna

A relação da fotografia com a arte moderna é estreita. Ela se desenvolve no momento em que as cidades europeias, especialmente Paris, ganham nova cara, iluminação elétrica, bondes, trens. Sua popularização fez com que artistas experimentassem com câmeras e quisessem transportar, para as telas, o "instante". A foto inaugura, de uma só vez, Impressionismo e Expressionismo. Não haveria Claude Monet sem fotografia.

Mas, durante muito tempo, os donos dos pincéis, assim como pensadores e críticos, não aceitaram a fotografia como expressão artística. Baudelaire chegou a dizer que a foto era "o inimigo mais mortífero da arte". A recusa foi tão forte que, na Exposição Internacional de Londres de 1862, a organização se negou a exibir fotografias na mesma sala em que as pinturas estavam.

Na França, a partir dos anos 1860, pintores e fotógrafos trocavam ideias e influenciavam uns ao outros. Um grupo de jovens pintores (entre eles Monet, Paul Cézanne e Auguste Renoir), avesso ao academicismo dos salões de arte tradicionais, teve suas obras rejeitadas no Salão Oficial. A partir daí, vários grupos passaram a organizar mostras paralelas. Em 1874, o fotógrafo Félix Nadar abriu seu estúdio para a primeira mostra dos impressionistas.

Para o professor de arte na UnB (Universidade de Brasília) e pesquisador Silvio Zamboni, "a pintura vem ocupar - por mais paradoxal que possa soar a frase -o exato lugar da pintura. A partir da consciência que a invenção da fotografia impinge a essa secular linguagem artística, a pintura assume a feição da complexidade que lhe cabe, em contraponto ao simples registro da realidade e da simples cópia da natureza".

'Olhando do lago em direção às montanhas', de Ansel Adams (1942) - Wikimedia Commons - Wikimedia Commons
'Olhando do lago em direção às montanhas', de Ansel Adams (1942)
Imagem: Wikimedia Commons

Fotografia e arte

De acordo com Ana Laura Gamboggi, coordenadora do curso de pós-graduação em Fotografia como Arte Contemporânea do Centro Universitário Senac, a fotografia libertou os pintores para criar. E, na contramão, deu ambição a fotógrafos: o movimento pictorialista, surgido na França, na Inglaterra e nos Estados Unidos, a partir da década de 1890, reunia fotógrafos que almejavam produzir "fotografia artística".

A fotografia foi capaz, ainda, de deslocar o eixo criativo do mundo: ainda que a arte moderna tenha nascido na Europa (boa parte das vanguardas artísticas surgem entre França, Itália e Alemanha), foram os EUA que abraçaram com entusiasmo as possibilidades artísticas da fotografia. Com isso, os norte-americanos passam a disputar protagonismo também nas artes plásticas.

Gamboggi destaca o papel importante do MoMA, o Museu de Arte Moderna de Nova York, na valorização do trabalho fotográfico. Inaugurado em 1929, o MoMA realizou uma importante exposição fotográfica em 1937, e, três anos depois, criou seu próprio departamento de fotos.

Alguns anos antes, contudo, um fotógrafo foi admitido no acervo permanente de um museu. Nascido no estado de New Jersey, Alfred Stieglitz (1864-1946) pode ser considerado o primeiro fotógrafo-artista da história. Suas obras foram parar no Museu de Belas Artes de Boston, ainda em 1924. Antes de se casar com a artista plástica Georgia O'Keeffe, Stieglitz passou alguns anos na Alemanha. Aprimorou-se na fotografia naquele país e, na volta para os EUA, promoveu intenso intercâmbio artístico entre profissionais europeus e norte-americanos.

Outros nomes importantes da fotografia, no momento em que ela passa a ser encarada como obra de arte, são Henri Cartier-Bresson, Ansel Adams e Julia Margaret Cameron. Na mão inversa, artistas plásticos como Norman Rockwell reproduzem, em óleo sobre tela, capturas fotográficas.

No Brasil, Ana Laura Gamboggi cita a importância da Semana de Arte Moderna para a fotografia: entre as produções do evento, houve uma série de exposições fotográficas feitas por modernistas. Hoje, fotos fazem parte dos acervos permanentes e ocupam espaços importantes de museus como o Masp (Museu de Arte de São Paulo).

'Canal de Veneza', de Alfred Stieglitz (1897) - Wikimedia Commons - Wikimedia Commons
'Canal de Veneza', de Alfred Stieglitz (1897)
Imagem: Wikimedia Commons

A foto hoje

A jornalista costarriquenha Nazareth Pacheco faz pesquisas em fotografia artesanal, com foco em temáticas indígenas. Por desenvolver trabalho em madeira, cada peça que produz é única e limitada. Em sua opinião, a fotografia pode ser dividida entre comercial e artística.

"A fotografia comercial tem fins apenas lucrativos. Já a artística traz sentimentos, quer mudar a visão de mundo de quem a está vendo. Uma foto que tem a interpretação de mundo do autor e que faz o receptor se questionar, para mim, é uma obra de arte", explica a jornalista.

Para a artista, o processo de criação aproxima ainda mais o fotógrafo do artista. "Não tem diferença em como um pintor e um fotógrafo se aproximam dos objetos que eles vão retratar. Eu, por exemplo, não tenho pressa nenhuma em tirar fotos", diz.
"Para uma foto ser considerada arte é preciso ter uma intenção artística, uma qualidade de composição, de luz, de ecossistema, um recorte, que é diferente de simplesmente fazer um registro", completa Ana Laura.

A especialista fala ainda sobre como a popularização dos equipamentos pela Kodak, a partir de 1990, transformou e redefiniu o mercado fotográfico. Foi aí que surgiram pretensos artistas. "Fotografia, apertar o botão, qualquer um pode fazer, mas nem todo mundo que produz imagem é fotógrafo."

As redes sociais transformaram a fotografia?

Com o advento dos smartphones, a discussão de que qualquer um pode ser fotógrafo voltou à cena.

Fotógrafo há cerca de 5 anos, Luiz Moreira não acredita que os celulares atrapalhem seu trabalho. "Apesar de muitas pessoas hoje em dia conseguirem realizar cliques bem bonitos com telefones, há situações em que é necessário o olhar artístico do fotógrafo profissional e equipamentos fotográficos mais adequados do que o celular", explica.

Luiz se consagrou no meio artístico após cobrir e acompanhar algumas edições do festival Afropunk. Ele faz uso das redes sociais para expor seu trabalho e considera o Instagram essencial na divulgação de suas obras. "Muitas das vendas de quadros e prints que fiz foram por pessoas que se conectaram comigo através do Instagram e alguns dos melhores convites que tive para exposições ou colaborações surgiram de pessoas que viram meu trabalho viralizando na internet."

Para ele, cada clique é arte. "Trago imaginação, sonhos, experiências e amor para meus projetos autorais e acho que o que surge a partir daí é arte pura."