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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Paraguai vive dias de fúria por colapso na pandemia. Por que não aqui?

05.mar.2021 - Protestantes tomam as ruas de Assunção, no Paraguai, contra o presidente  Mario Abdo Benítez - REUTERS/Cesar Olmedo
05.mar.2021 - Protestantes tomam as ruas de Assunção, no Paraguai, contra o presidente Mario Abdo Benítez Imagem: REUTERS/Cesar Olmedo

Colunista do UOL

10/03/2021 04h00

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Há dias os manifestantes estão nas ruas. Exigem a saída do presidente, que pode sofrer um impeachment a qualquer momento.

Na primeira noite de protestos, mais de 10 mil pessoas saíram de suas casas furiosas com a corrupção e a gestão da pandemia, considerada desastrosa. Nos hospitais faltam remédios e a vacinação é insuficiente. A pressão levou à queda do ministro da Saúde.

Não, você não foi dormir em um país em estado de letargia e acordou no meio da revolução. As cenas não são daqui. Foram registradas no Paraguai — que, nos últimos dias, entrou em convulsão ao ligar o alerta sobre o avanço do coronavírus.

A curiosidade é que os índices paraguaios parecem descrever a Disneylândia perto do que acontece no Brasil. Até o momento, o país vizinho, que tem 7 milhões de habitantes, registrou 165 mil casos de covid-19 e 3,2 mil mortes em decorrência da doença. É o que notificamos em apenas dois dias.

O Brasil tem hoje um índice de mortalidade por milhão de habitantes três vezes maior do que os paraguaios — e quem reclama ouve do presidente que é preciso engolir o choro, "parar de frescura e mimimi e encarar a pandemia como homens, não maricas. Ele também ameaça cortar auxílio-emergencial aos estados que aderirem ao lockdown no momento em que só o lockdown pode salvar vidas.

Por muito menos, o presidente Mario Abdo Benítez está agora na corda bamba. Por aqui, parecemos responder às cusparadas com a mais bovina das reações. Por quê?

Apesar de fazerem fronteira, são muitos os pontos que separam os contextos do Brasil e do Paraguai. O Brasil é um caso único, e é olhado de longe não só com pena ou estranhamento, mas com medo. Isso ficou demonstrado na constrangedora visita da comitiva brasileira a Israel, onde nossas autoridades tiveram que colocar o rabinho ideológico entre as pernas para serem enquadradas nos protocolos de segurança sanitária de quem não quer ver seu país se transformar num novo Brasil.

Jair Bolsonaro, provavelmente o pior gestor do planeta ao longo da crise, o único que se nega abertamente a reconhecer a gravidade da pandemia, a usar máscaras, a apostar na vacina ou a unir esforços para conter a disseminação do vírus com prefeitos e governadores, não é fruto da nossa indiferença, mas o contrário. Ele é resultado da gritaria disfuncional observada durante anos de manifestações de rua, aquelas que alertavam para o cansaço do sistema político tradicional e abraçava qualquer solução milagrosa — da intervenção militar à higienização forçada da cena do crime oferecida pela Lava Jato.

Foi a esperança de uma solução fácil para problemas complexos, e levou a maioria dos brasileiros a se sentir atraída por uma resposta simples e completamente errada para mudar tudo isso que está aí. É essa espera barulhenta por salvação que faz parte da população acreditar agora em remédios e sprays milagrosos, sem comprovação científica mas completamente verossímeis para quem crê em messias e outros mitos.

As forças anuladas de vetores para a revolta podem ser identificadas nas pesquisas de opinião e nos números ainda altos, embora em queda, dos que consideram o governo Bolsonaro ótimo, bom ou regular. Juntos, eles somam 57% da população, segundo o último Datafolha.

Não é que faltem razões para a fúria. A questão é que ela fica difusa quando cada um tem a sua razão para protestar, com panelas ou solas de sapato em ruas onde já não podem ser ocupadas sem risco.

Como apontam as pesquisas de popularidade, não há consenso sobre quem são os culpados pelas misérias ainda mais escancaradas na pandemia. Há quem a atribua aos velhos políticos cooptados pelas empreiteiras pegas na Lava Jato. Há quem culpe a própria Lava Jato e seus métodos persecutórios. Há quem já veja as digitais do colapso nos áulicos da nova política, que de nova não tem nem os dentes.

Num país de opiniões tão divididas, é justamente Bolsonaro, liderança que mais estimula a divisão e o confronto, quem ganha com a pulverização da raiva, centrada nos grupos contrários a outros grupos, enquanto ele e os comparsas aliciam as estruturas por dentro — as responsáveis por investigação e as responsáveis por conter o estouro da boiada.

Não há paz que sempre dure, porém.

No Paraguai, foi justamente a perspectiva de piora do quadro sanitário, sem soluções a curto prazo, que gerou a fagulha para a revolta. Como Bolsonaro, Abdo Benitez demorou para se precaver e fechar contratos com mais de uma fabricante de vacinas — e a população não tinha, como contraponto, um oponente disposto a comprar a briga e estimular a produção do próprio imunizante, como fez João Doria em São Paulo em parceria com uma fabricante chinesa. As poucas doses que lá chegaram, basicamente, só imunizaram os profissionais da saúde, estimados em 0,1% da população. A duras penas, o Brasil já se aproxima dos 4%.

Bolsonaro tem a seu favor também o auxílio-emergencial, que segurou a fúria e o poder de renda de parte considerável dos brasileiros. O resto fica por conta do cansaço.

Como lembrou Sidarta Ribeiro, em reportagem de domingo na Folha de S.Paulo, o cérebro humano é ótimo em perceber e processar novidades, mas se habitua aos estímulos que se repetem. A exceção é a dor, mas só a que somos capazes de sentir. Isso significa que somos capazes, sim, de nos acostumar com a dor alheia. E, pela repetição, as fotos e vítimas dos mortos e agoniados já não causam assombro.

A essa altura, não deve ser descartado o atordoamento também de quem crê e de quem custa a crer no "show de besteiras" — palavras do general, ex-ministro e ex-aliado Carlos Alberto dos Santos Cruz — produzidas em escala industrial por Bolsonaro, que se sucedem e impedem os candidatos a manifestantes a direcionarem a bronca a um ponto específico. É o que permite a grupos de esquerda irem às ruas no sábado com uma pauta e os grupos liberais, incomodados com os intervencionismos do governo, no domingo —enquanto outra turma ainda sai de quando em quando às ruas em defesa do negacionismo governista e da implosão do Congresso, do STF e dos palácios estaduais para dar lugar a uma cadeia de fábricas de cloroquina.

Com a crise da última década, partidos, sindicatos e uniões estudantis, que antes conseguiam organizar minimamente as demandas populares, deram lugar ao cada um por si. E, mesmo entre os líderes das legendas, nem todos os que ainda não foram cooptados, como o "centrão", estão dispostos a pressionar Bolsonaro e dar de bandeja o governo ao general Mourão, um genérico bolsonarista que fala francês. Preferem, como diz o jargão, ver o governo sangrar e se desgastar para ter alguma chance em 2022.

Por enquanto, o único território em que a polifonia das manifestações entra em acordo é no silêncio do cemitério.