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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Facebook queria aumentar interações entre familiares. Conseguiu devastá-las

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Imagem: Istock

Colunista do UOL

18/09/2021 04h00

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Email inválido

Em janeiro de 2018, Mark Zuckerberg anunciou que o feed de notícias do Facebook passaria por mudanças gradativas. A ideia era que, em vez de links com notícias de portais ou mensagens de empresas e marcas, a rede social passasse a privilegiar a visualização de postagens de amigos e familiares.

A estratégia desagradou os produtores de conteúdo jornalístico, mas lembro que foi lida por quem estava cansado de notícias como uma jogada de gênio. A maior plataforma de interação do planeta apostava alto no reforço dos laços comunitários e nas relações pessoais.

Como nos primórdios do Orkut, os internautas (assim éramos chamados nos primórdios) voltariam a compartilhar apenas fotos fofas de gatinhos, crianças arteiras com legendas do tipo "papai e mamãe amam muito", correntes de orações e agradecimentos por conquistas pessoais, tipo desentupir a própria caixa de gordura.

Não sei se vocês perceberam, mas deu tudo errado.

Mais de três anos depois, primo não fala mais com primo, tia foi bloqueada pelo sobrinho, vizinhos passaram a oferecer fezes, em vez de bolo e xícaras de açúcar, para vizinhos, pais alucinados precisaram ser silenciados e o que mais se ouve por aí agora é que o Facebook se tornou um lugar tóxico, inabitável, com cada vez menos gente disposta a circular por ali.

Não, não é só você e não vem do acaso a sensação de que as relações humanas foram devastadas de três anos pra cá. A culpa não é sua. Nem da sua tia recém-convertida a revolucionária nacionalista. Não é nem da eleição. A culpa é do Zuckerberg.

Graças ao anjo troncho do Vale do Silício, o Facebook matou a pauladas as fotos dos gatinhos e acabou empoderando figuras como o Nelsão da Brasa, apelido do churrasqueiro que fez o tiro de guerra com seu pai e há anos mandou aquela solicitação de amizade com um inocente "meu Deus, como você está grande, ainda lembro de você pequenininho comendo terra e tatu-bola".

O Nelsão da Brasa, você se lembra, faz um churrasco como ninguém. Ótimo profissional, nunca desapontou ninguém, mas de um tempo pra cá resolveu mudar o mindset e se tornou especialista em outro tipo de combustão. O Nelsão agora tem na ponta do indicador a deslizar pela tela a solução para consertar o Brasil em três dias, trazer seu amor pela pátria de volta com a ajuda de armas e bombas estrategicamente instaladas pelas canaletas da República.

Ele disserta sobre o funcionamento de vacinas, chips comunistas e planos interceptados por sistemas de inteligência que não querem que você descubra a verdade sobre o avanço chinês. O Nelsão sabe também localizar na Constituição leis e crimes previstos na Carta que nenhum dos 11 ministros do Supremo conhecem — daí sua nova especialidade, a de motorista especializado em sufocar as veias e artérias do país com veículos de quatro eixos ou mais, até que todos os juízes e parlamentares traidores da pátria sejam destituídos e substituídos por outros amigos do seu pai formados em direito pelo Facebook.

O Nelsão da Brasa hoje é um risco não só para a democracia (isso você já leu por aí), mas também a um velho ordenamento em que era preciso ler um pouco mais do que três linhas de teses e estudos para ganhar diploma de especialista de qualquer assunto e sair opinando e doutrinando por aí.

Como crianças contestadoras, o Nelsão da Brasa está engajado em descobrir que existe um mundo fora da grelha e, mesmo sem entendê-lo, é a hora de transformá-lo. Crianças contestadoras são sempre um desafio aos pais. Isso é parte da vida e assim caminha a humanidade. Nem por isso damos a elas a chave do carro.

Em muitos casos, o tempo de estudo de um adulto sobre determinado assunto é o mesmo de uma criança. Ele não sabe disso porque tem todos os algoritmos, com mãozinhas de aplausos e bandeirinhas de endosso a seu favor.

O Nelsão da Brasa nunca pisou em uma redação nem sabe o perrengue que é fazer passar uma notícia (ou sugestão de pauta) pelos filtros de chefes de reportagens, editores, organizadores de chamadas na primeira página. É um trabalho árduo que envolve profissionais gritando "pede para sair" na nossa orelha e que podem errar muitas vezes, mas se capacitaram para isso e possuem ferramentas para impulsionar discussões, trazer contrapontos, publicar erratas, corrigir rotas, devolver o material por falta de apuração, etc. Não tem nada a ver com o mundo de ideias prontas mediadas pelo senso comum do aplauso fácil que democratizou apenas o acesso ao caos.

Essa conclusão acaba de ser divulgada em uma série de reportagens do Wall Street Journal, segundo o qual a mudança de algoritmo do Facebook, anunciada no já distante 2018, aumentou a desinformação, a violência e os conteúdos agressivos da rede. O próprio Facebook sabia disso e pouco fez para evitar.

Desculpa, Nelsão. Mas a gente preferia quando você escrevia para saber como estavam nossos pais, e não para xingar ou ensinar como devemos viver e nos proteger de monstros que só existem na sua tela.

A culpa não é sua. A culpa é do Zuckerberg. E de quem entendeu que os algoritmos poderiam ser uma ótima fonte de renda estimulando o medo e o terror enquanto devastava o que restava da relação entre velhos amigos.