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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Filme chileno mergulha na origem do extremismo de direita mais atual

Cena do filme "Aranha", de Andres Wood - Reprodução
Cena do filme "Aranha", de Andres Wood Imagem: Reprodução

Colunista do TAB

25/09/2021 04h00

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Ao testemunhar o roubo de uma bolsa, o motorista acelera o veículo por ruas, becos e vielas do centro da cidade. O assaltante percebe que está na mira e tenta fugir. O fim da linha é um muro alto para onde o condutor arremessa o veículo, prensando metade do corpo do fugitivo entre as ferragens.

Antes de descer cambaleante do automóvel, Gerardo recebe aplausos efusivos de uma pequena multidão. É detido em seguida, sob protestos, pela polícia.

Algemado, o personagem interpretado por Marcelo Alonso afirma orgulhoso que apenas apenas cumpriu um dever cívico: limpar as ruas de criminosos. A história do justiceiro viraliza. Mais aplausos.

As cenas iniciais de "Aranha", longa chileno que entrou em cartaz na quinta-feira (23) por aqui, chocam no mesmo paredão o assaltante, a vítima, o extremista e o espectador que já aplaudia o banho de sangue. O herói popular é, na verdade, um criminoso que durante anos viveu na clandestinidade.

Ao longo do filme de Andrés Wood ("Machuca"), a história do assassino orgulhoso é reconstituída em dois momentos. O primeiro é o do Chile às vésperas do golpe militar contra Salvador Allende, no início dos anos 1970.

A eleição de um presidente socialista, como se sabe, deixou em polvorosa parte da elite chilena, que começou a mobilizar recursos e esforços para promover todo tipo de propaganda e violência contra grupos populares que apoiavam as reformas prometidas pelo novo governo. Entre esses grupos estava a milícia "Pátria e Liberdade", grupo extremista de forte discurso nacionalista e anti-marxista. Seu símbolo, uma aranha, lembra o sigma da Ação Integralista Brasileira, movimento de ultradireita de influência fascista fundado durante o governo Vargas e ressuscitado no Brasil de Bolsonaro — que praticamente reciclou o lema da turma com os dizeres "Deus, pátria e família".

Qualquer semelhança com o Chile dos anos 1970 não é mera coincidência.

Em entrevista ao jornal "El Dínamo", Wood disse que começou a escrever o roteiro de "Aranha" bem antes da eleição de Bolsonaro ou mesmo de Donald Trump, em 2016, nos EUA. "De alguma forma, esse nacionalismo que estava sendo respirado se desenvolveu."

De fato.

Personagem-chave para entender esse movimento, Gerardo, o motorista que combate o crime praticando outro crime nos primeiros parágrafos, é o exemplo bem acabado da fibra extremista que o cineasta diz "que todos nós temos em algum lugar". Muitos, aqui, sob o disfarce de cidadão de bem.

A fibra nacionalista do personagem é organizada como discurso após se juntar aos milicianos do "Pátria e Liberdade" a convite de um casal de jovens meninos ricos, entediados e recém-convertidos a revolucionários armados em defesa de seu país.

Eles recrutam Gerardo ao ver o então ajudante de uma equipe de fotógrafos enforcar o patrão após ser humilhado durante um trabalho. Ali ele mostrava ter de sobra a matéria-prima que o grupo procurava: raiva.

O casal de playboys reconhece naquele trabalhador humilhado, revoltado, violento e abandonado um corpo para a ação que eles mesmos não têm coragem de empreender. É a receita para a tragédia.

Gerardo passa a frequentar o círculo de milicianos, em uma mansão de Santiago, pensando ser um deles enquanto repete (sem pensar muito sobre) os mantras da nova cartilha ideológica. Detalhe: o líder da seita no filme é interpretado por Caio Blat.

A conversão em caçador de comunistas impede Gerardo de perceber que é apenas massa de manobra de grupos hegemônicos e privilegiados com muito a perder — diferentemente dele, que sela seu destino ao aceitar ser a bucha de canhão de uma espécie de versão local do atentado ao Riocentro e outros crimes.

Usado, traído e abandonado pelos parceiros de empreitada, Gerardo volta ao país após um exílio forçado em busca de vingança. Volta mais velho e ainda mais atormentado. Mas seu revide não está posicionado contra quem de fato explora gente como ele.

A história de seus doutrinadores é a história dos vencedores, mesmo ao fim da ditadura Pinochet e a reconstituição da verdade. Com dinheiro, eles conseguem comprar casa, carro, segurança, reputação e até uma versão própria da história — fizeram o que fizeram, mataram quem mataram, inclusive inocentes, para salvar o país. Você já deve ter ouvido algo parecido por aí.

Quem assiste ao filme com um mínimo de apreensão com a escalada autoritária versão 2021 percebe que o problema desse tipo de nacionalista não é seu amor à pátria, mesmo que ele seja incapaz de reconhecer os problemas mais enraizados de seu país com os slogans das ideias-feitas. O problema é que ele tem uma arma engatilhada enquanto determina o que deve ou não fazer parte de seu conceito da bem ou nação. Quase sempre, o extremista do tipo, no presente e no passado, é o único sujeito da história que se autodeclara capaz de definir quem são os verdadeiros compatriotas — e, consequentemente, quem pode ou não ser eliminado.

Por incrível que pareça, a violência daqueles personagens movidos pela raiva e mobilizados pelo ódio não é o que mais assusta no filme. O que mais assusta é a sua atualidade.

Em tempo. Quem já tomou sua vacina e não vê a hora de voltar a frequentar o cinema, uma dica de filme com menos tiro, porrada e bomba é "O bom médico", comédia francesa dirigida por Tristan Séguéla que acompanha a uberização da rotina de um clínico geral durante uma noite de Natal.

Entre uma notificação e outra via celular, o personagem de Michel Blanc percorre as ruas de Paris dirigindo o próprio carro até que, com dores nas costas, precisa recrutar um entregador de comida por app para se passar por médico durante os atendimentos em seu lugar.

O encontro entre a ciência e a economia de bico tem cenas hilárias e outras de reflexão. Uma delas é quando o entregador volta disfarçado de médico para a mesma casa onde, horas antes, havia levado uma lagosta para o jantar e foi humilhado pelo cliente. O personagem vivido por Hakim Jemili é o mesmo, mas o cliente-paciente nem percebe. De um ele só vê a caixa de entrega e uma oportunidade para o escracho. De outro, apenas o jaleco, ao qual manifesta uma espécie de submissão prévia ao saber médico. Em nenhum dos dois é capaz de olhar para o elemento humano por trás dos signos que os separam.