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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Não é sobre você': a frase de 2021 podia bem nos acompanhar em 2022

O jogador de vôlei Maurício Souza e o Superman - Reprodução / Internet
O jogador de vôlei Maurício Souza e o Superman Imagem: Reprodução / Internet

Colunista do TAB

30/12/2021 04h01

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Todo fim de temporada costumo fazer uma lista de expressões que deveriam ser aposentadas no ano seguinte. Em 2020 ninguém aguentava mais termos como "reinvenção", "novo normal", "ressignificar", "disrupção", "webinar", "pãodemia". Com o tempo, as palavras caíram na mesma vala comum de hits dos anos anteriores como "top", "sextou" e "startar".

Em 2021 resolvi mudar o "mindset", expressão que felizmente também parece caminhar para a sarjeta do desuso.

Quero falar de uma expressão que deveríamos, isso sim, usar mais vezes e adotar como hino nacional — quiçá usá-la na bandeira — no ano que se inicia: "não é sobre você".

Deve haver alguma palavra em alemão que resuma o alerta contido nessa frase. Ela é tão necessária que poderia virar no futuro um novo botão de reação no Facebook. É por lá que a falta de aviso e noção têm proliferado a galope.

Duvida? Pois tente lembrar como estava inabitável sua linha do tempo após a polêmica envolvendo um jogador de vôlei e o filho do Superman (sic). Revoltado com o anúncio de que o personagem do gibi havia assumido ser bissexual, o atleta esperneou em suas redes, tomou um puxão de orelha dos patrocinadores e preferiu perder o emprego a pedir desculpas.

O caso gerou comoção porque, na leitura corrente do senso comum, o jogador foi punido simplesmente por ter manifestado uma opinião. E, por alguma razão, vivemos na era em que todo mundo precisa opinar sobre tudo, sob o risco de explodir. "Ele está certo, onde vamos parar?". "Eu não acho normal ter homossexual no gibi, não." "Na minha opinião isso é mau exemplo para a juventude." "Não sou obrigado(a) a achar natural esse tipo de coisa." "Eu não considero ofensiva a postagem." Eu, eu, eu, eu.

Em cada textão sobre o assunto, a vontade era mandar um link informativo do tipo "obrigado pela opinião, fera, mas se você não sabe o que é precisar esconder sua sexualidade para não ser tratado como aberração, sob o risco de MORRER ou ser expulso de casa, lamento, mas isso não é sobre você; entenda".

Quer outro episódio? Em novembro, logo após o acidente aéreo que vitimou Marília Mendonça e parte de sua equipe, as redes sociais de amigos e conhecidos se converteram em território de um fenômeno que uma amiga sabiamente chamou de "eubituário", a arte de falar de si fingindo falar de alguém. "Quero dizer aqui que essa pessoa foi muito importante para minha vida e me ajudou em um momento difícil a ser esse alecrim dourado que nasceu no campo sem ser semeado e que brilha com essa luz própria que vocês podem ver agora."

Manifestações do tipo poderiam facilmente ganhar também o selo de "eumenagem".

No meio das loas a si mesmo, muita gente tomou o caminho oposto e fez questão de dizer ou explicar por que não lamentava a morte da cantora nem apreciava seu trabalho e menos ainda entendia o que Caetano Veloso viu nela a ponto de citá-la como "Maravília" em uma música. E tome exposição de referenciais estéticos e sentenças de autoridade para justificar o distanciamento da expressão artística mais popular do Brasil na atualidade —a que eles faziam questão de dizer que não conheciam, não queriam conhecer e tinham raiva de quem conhecia.

Nessa hora é que faz falta aquele toque: "ok, mas nada disso é sobre você".

Se essa expressão for de fato normalizada ano que vem, é possível que exista alguma chance de a gente sair desse atoleiro. A frase pode ser a boia salva-vidas para os encontros mais ordinários em que alguém diz "A" e na sequência recebe uma lição do tipo "no meu caso, o que acontece é...".

Pode reparar. Não tem nada que preste dessa introdução em diante. Porque (vamos decorar) "não é sobre você".

Não faz muito, escrevi um comentário despretensioso sobre o Pelé no Facebook e não faltou quem me escrevesse, na mesma hora, para dizer que não gostava do Rei, nem do Edson Arantes do Nascimento, menos ainda de futebol. Na falta de outro botão, meu joinha veio com corpinho de "ok, mas isso também não é sobre você".

Quando criança, uma brincadeira irritante dos adultos após um peteleco nas orelhas (nos anos 1990 isso ainda era bem comum, há registros) era quando eles olhavam a nossa cara de choro e perguntavam: "doeu? Não senti nada".

Aquilo era o gérmen de uma geração que só vê dor, alegria ou graça quando rasga na própria pele.

Em tempos pandêmicos, todo mundo tinha uma opinião diferente sobre a crise sanitária global a partir do instituto "eu vivi isso e posso afirmar que (complete a frase)". Se o sujeito foi contaminado e não morreu, o vírus não tem risco e a pandemia não existiu. Só que (vamos lembrar de novo), essa pandemia "não é sobre você".

Vale para o tiozinho da firma, vale para o presidente, que se gaba por não ter se vacinado e acredita, espalhando a tese furada por aí, que a melhor forma de criar anticorpo é se contaminar como ele fez.

(Para a minha avó, presidente, não deu certo. Nem para a avó da minha companheira. Nem para meu vizinho. Ou para o Paulo Gustavo e outras quase 620 mil vítimas de uma pandemia que não, não foi criada em laboratório para se espalhar pelo mundo todo e prejudicar só você e os negócios de quem te defende.)

Na eleição que se aproxima, o drama deve ganhar novos contornos. Não caberá no gibi o tanto de gente a estranhar resultados diversos daqueles apurados na própria bolha. Ou a espernear com o voto dos amigos em tudo aquilo que considera mais abominável. "Não entendo como alguém pode (complete a frase)." Sim, não entende. Porque nem mesmo a eleição não é sobre você. É sobre um negócio mais complexo chamado todos nós.