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Matheus Pichonelli

REPORTAGEM

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'Estamos na completa oposição ao espírito que moveu 1922', afirma ensaísta

Pagu, Elsie Lessa, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti e Eugênia Álvaro Moreyra em foto pós-Semana de 22 - Tarsila: sua obra e seu tempo (São Paulo: Perspectiva, 1975, p. 280) via Wikimedia Commons
Pagu, Elsie Lessa, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti e Eugênia Álvaro Moreyra em foto pós-Semana de 22 Imagem: Tarsila: sua obra e seu tempo (São Paulo: Perspectiva, 1975, p. 280) via Wikimedia Commons

Colunista do UOL

20/02/2022 04h00

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Diferentemente do que se tenta reescrever agora, o modernismo, cem anos recém-completados na semana passada, foi um levante de base crítica, criativa e com senso de historicidade muito grande. É o que afirma o romancista, poeta e ensaísta Mauricio Salles Vasconcelos, especialista da USP em Literaturas Comparadas de Língua Portuguesa.

Para o autor de "Avital Ronell - A questão, o escândalo e a cultura test drive", o movimento iniciado a partir da Semana de Arte Moderna, realizada entre os dias 13 e 17 de fevereiro de 1922, interligou questões nacionais numa postura avaliadora radical do território e da cultura brasileira.

Hoje, afirma, traduzir essa postura leva a uma reconfiguração diante de um contexto muito diferente daquele que Mário, Oswald de Andrade e companhia encontraram nos corredores do Theatro Municipal de São Paulo. "O modernismo, de certa forma, se estratificou, se tornou um padrão e se estatizou. Nosso Estado tem base modernista, refeita e sedimentada a partir da irrupção de 22. Nossa visão de cultura vive circularmente com questões de nacionalismo improdutivas."

Além disso, prossegue o especialista, a cena cultural do Brasil de agora é "gritantemente acadêmica, descartou a pesquisa e o experimentalismo".

Por isso é preciso haver hoje uma "reconversão de estratégias que moviam o modernismo há cem anos". "Precisamos antropofagizar o Brasil", defende o especialista, para quem o país encontra atualmente um grande entrave para uma transformação profunda. "Essa consciência renovadora teria de se desfazer do que se nacionalizou como forma colonizadora. É um paradoxo, cem anos depois. Porque chegamos a um estado de imobilismo em todos os campos políticos e culturais. Nos tornamos um país que permite uma governança, uma falcatrua sem instrumento de ativismos e de luta política à altura da terceira década do novo milênio."

Vasconcellos afirma que "estamos na completa oposição ao espírito que moveu 1922". "Não temos hoje um conjunto de artistas, pensadores e políticos que respondam às gradações da globalidade, da diversidade de um campo de teoria e ação política. Estamos presos ainda ao partidarismo. Não se pensou em um ativismo contemporâneo autônomo. Não é tematizar questões como as da negritude, da causa indígena ou simplesmente trazer questões de sexualidade. É fazer levantes e criar formas heterogêneas de intercomunicação entre as várias frentes renovadoras do país."

Segundo o ensaísta, um dos contrastes com o espírito de 1922 e o atual é que o Brasil se tornou um país "altamente burocrático, corporativista, que só lida com sistemas assegurados de pensamento". "É uma total institucionalização em todos os setores. Não há pensadores como houve há cem anos, independentes, para repensar nossa geografia cultural e política. Um país que conseguiu admitir como música oficial o agronegócio, no campo fonográfico, é uma grande baixaria. É uma regressão tremenda", opina.

Vasconcelos observa que praticamente inexiste, no mundo pós-moderno e pós-agonia globalizante, uma postura experimental no campo cultural. Ainda assim, ele destaca trabalhos de autores que tem conseguido se sobrepor ao que chama de paralisia. Ele cita como exemplos os poetas Régis Bonvicino ("ele traz repertórios antenados com o presente, com poder crítico e muito singular"), Ricardo Domeneck ("sem fazer nenhuma reverência ao modernismo, ele propõe um experimentalismo à altura de uma época que pôs em crise as categorias de vanguarda") e Marcelo Ariel ("seus livros 'Tratados dos anjos afogados' e 'Com o daimon no contrafluxo' colocam numa estatura erudita as referências de vários campos de pensamento").

Ainda segundo o ensaísta, Ariel consegue trazer à cena da poesia o território agônico de Cubatão (SP) como registro de uma realidade situada no auge do impasse das políticas de energia e do caos ecológico. Além disso, afirma, Ariel trata do tema da negritude de uma maneira que dialoga com o filósofo camaronês Achille Mbembe, autor de "Crítica da Razão Negra" — e que Maurício Salles Vasconcelos considera o grande pensador africano hoje.

"São pensadores e artistas negros que não se limitam à temática apenas. É uma reviravolta. O devir negro no mundo é uma questão da humanidade. A humanidade não vai se transformar socialmente se não encampar essa causa, que é a causa do próprio humano."

Ariel, em contato por e-mail com a coluna, diz se questionar hoje como a consciência das diferenças como composição de mundos atuais — negros, ameríndios, feministas — dialogam com o ideário da Semana de 22. E lembra que os expoentes da Semana de 22, criticados pela postura supostamente "paulistocêntrica", embutiam também traços de diversidade. Um exemplo é a poeta modernista Julieta Bárbara, autora de "Dia Garimpo". "A Semana de 22 poderia ter sido o pólen do artivismo praticado por Jaider Esbell? Mais do que ecos, há um pensamento crítico em relação a este ideário no livro de autoria coletiva 'Makunaímã - o mito através do tempo', do qual eu e Jaider participamos, e na peça-rito derivada da (obra) dele 'Trans Mito Makunaimã'."

Apesar desses ecos do modernismo serem encontrados aqui e ali, Vasconcellos aponta que o modernismo, hoje, não poderia ser simplesmente parodiado ou refeito. Ainda assim, "nunca foi tão necessária uma cultura crítica do Brasil que se modernizou, que carrega o modernismo nas costas e precisa ser submetido a uma antropologia do próprio país", argumenta. "Nossos grandes opositores da liberdade e da invenção são os próprios brasileiros que institucionalizaram esse país, que fazem da arte um espaço de corporativismo, de empresariamento, e de total burocratização. Simplesmente repetem os padrões do mainstream, do que dá certo. Não há pensamento. Literatura não se faz sem conceitualidade, sem a crítica histórica do seu tempo com um amplo painel cognitivo em todas as áreas do conhecimento. O Brasil ainda é uma rede desconhecida de potências a serem reinventadas cem anos depois".

Para Ariel, o maior legado da Semana de 22 talvez seja a demanda urgente por uma elite econômica culta, interessada em uma verdadeira convergência entre economia, arte e vida, capaz de movimentos cada vez mais expansivos. Em vez disso, prevalece hoje "uma burguesia estúpida, que vê a cultura apenas como um adendo ao lucro ou propaganda para a marca de seus produtos e não como um direito social. A palavra lucro, em sua origem significa engano, logro", afirma.

Ser experimental, afirma o poeta, é viver uma vida experimental e hiperinclusiva. "É ser um nômade por dentro, capaz de se deslocar atenciosamente na direção das diferenças, daquilo que não é você e compõe mundos humanos e não humanos, sabedorias, oposições, amores e ontologias. (É) ser um nômade psíquico, um guerrilheiro psíquico. É lutar com alegria, amor e desejo para desfazer a mentira, o maior fake news de todos os tempos expresso pela frase-farsa 'tempo é dinheiro'. Precisamos voltar a acontecer não apenas como 'cidadãos', mas como viventes dignos."