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'Os Miseráveis' versão Brasil: ladrão rouba padre e padre atropela ladrão
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Um homem acusado de furtar três moletons e uma camiseta de uma paróquia em Santa Cruz do Rio Pardo, no interior paulista, foi atropelado enquanto corria, em fuga, na noite fria de sábado (7), dia de Santa Flávia, a santa da caridade.
Câmeras de segurança flagraram o momento em que um automóvel branco invadiu a calçada e acertou o fugitivo em cheio. O rapaz foi arremessado para dentro de um imóvel com o corpo prensado entre a lataria e o portão.
Segundos depois, o sistema mostrou o veículo saindo do local em marcha a ré, disparando na sequência pela rua deserta do município de 57,9 mil habitantes.
O motorista era um padre de 37 anos que agora é investigado por tentativa de homicídio e omissão de socorro. Sua carteira de habilitação estava vencida.
O homem atropelado foi preso em flagrante.
Afastado de suas funções na igreja, o padre, abalado, vai responder ao processo em liberdade, durante uma espécie de retiro espiritual em um convento de São Paulo. Ele delegou a um advogado a missão de representá-lo perante os mestres da lei e os fariseus da imprensa.
Coube ao defensor explicar que o padre (na verdade frade, palavra que vem de "frater", ou irmão, em latim) agiu em legítima defesa e, de acordo com um artigo do Código do Processo Penal, "qualquer cidadão pode deter alguém que esteja em situação flagrante". Inclusive um padre.
O código se abstém sobre o uso de automóveis em velocidade para a detenção, mas vá lá. A questão agora está na Justiça com jota maiúsculo.
Na lei divina é que o caldo engrossa. Ninguém voltou do outro plano ainda para dizer qual a pena costuma ser aplicada, no julgamento final, contra alguém que ousa furtar uma paróquia. O que dizer então do sacerdote que decide conceder o perdão lançando o automóvel contra o pecador? (Não havia veículos motorizados nos tempos bíblicos, o que complica a dosimetria da punição).
Em seu retiro no convento, o sacerdote talvez tenha tempo de buscar no Novo Testamento o que um certo Jesus dizia sobre o amor ao próximo. Poderá também buscar na literatura uma espécie de jurisprudência moral.
Não foi outro o dilema do Monsenhor Benvindo, personagem do romance "Os Miseráveis" (1862), de Victor Hugo, ao saber que seus talheres de prata haviam sido surrupiados por um forasteiro que ele abrigara em sua própria casa.
Como se o crime, a exemplo da mentira, tivesse perna curta, o fugitivo não demorou a ser pego pela polícia com as peças que contrastavam com seu figurino miserável.
Levado de volta à casa do monsenhor (na verdade, bispo Charles-François Myriel) para a acareação, o autor do furto se surpreendeu ao ouvir a reprimenda do anfitrião: "Ah! Você voltou! Estimo vê-lo. Mas agora me lembro. Também lhe dei os castiçais de prata, como o resto. Por que não os levou, juntamente com os talheres?"
Antes de dispensar as autoridades, o monsenhor pediu em voz alta ao visitante para não se esquecer da promessa, que ele não tinha feito, de usar o dinheiro para se tornar um homem honesto.
A atitude mudou a vida de Jean Valjean, o protagonista da história que havia passado 19 anos preso por tentar furtar um pão para alimentar a irmã e os sete sobrinhos durante o inverno rigoroso de 1795 na França. O transgressor em situação flagrante foi perseguido e capturado pelo padeiro. Também não havia automóveis nessa época, a não ser os puxados pelos cavalos.
Valjean demoraria a entender o que aconteceu na casa do monsenhor. Nem sabia lidar com a iluminação repentina diante do que lhe foi negado a vida toda: compaixão e misericórdia. Duas palavras ouvidas à exaustão durante qualquer celebração religiosa.
Após uma crise de consciência profunda, com gritos e choro, o personagem foi visto naquela madrugada ajoelhado e rezando à porta do monsenhor. Era o começo de uma outra história.
Dizem que o personagem de Jean Valjean é inspirado em Eugène-François Vidocq (1775-1857), ex-presidiário francês que se tornou um empresário de sucesso conhecido por se dedicar aos pobres e à caridade.
No Brasil de 2022, a misericórdia e a compaixão são um carro em alta velocidade dirigido por um homem de Deus disposto a corrigir uma transgressão com um crime mais grave.
Longe da ordem divina, a que chama à conversão não os justos, mas os pecadores (Marcos 12:17), a lei dos homens permite ao padre que atropela um ladrão cem anos de licença e perdão.
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