Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Se voltar, Orkut será o grande baile da nostalgia da geração millennial
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
No começo de 2004, eu não tinha ouvido ainda falar sobre rede social até que, em uma aula da faculdade, a professora de novas tecnologias levou a turma para o laboratório de informática e pediu que fizéssemos uma conta num tal de Orkut.
Não vi graça nem sentido naquilo até receber uma solicitação de amizade de um amigo da minha cidade de quem não tinha notícias havia algum tempo. Eu tinha 21 anos, acabava de completar um ano fora de casa e aquela plataforma me pareceu um recurso para retomar o contato com quem estava longe da vista até então.
Por ali passei a receber as novidades dos amigos, por fotos ou descrição. Era uma busca ativa: como será que anda o fulano?
Para saber, bastava procurar seu nome e descobrir se casou, por onde andava, com quem viajava.
A possibilidade de ver e ser visto transformava nossas páginas pessoais em um jardim que precisava ser regado de informações de tempos em tempos.
O Orkut, por um período, serviu como um caderno ampliado daquelas enquetes em que definíamos nossas identidades e como gostaríamos de ser e ser vistos.
Qual sua banda favorita? O que você quer ser quando crescer? Cite uma viagem inesquecível.
Era um caminho sem volta.
Dezoito anos depois, é difícil colocar aquela escolha na balança e concluir se era melhor ou não ter encerrado a atividade curricular e me dedicado apenas aos delírios e experiências das coisas reais. Provavelmente levaria mais tempo para ser notificado sobre alguma novidade, mas certamente correria menos risco de ser atropelado desatento, anos depois, com a testa, o dedo e o nariz roçando uma tela de um celular.
Esse tipo de questionamento parecia eclipsado, na época, pelo tempo gasto em comunidades do tipo "Já pensou se pega no olho", "Cabras não tem muitas ambições" e "Eu cantava errado".
Essa última me tomou alguns anos de vida, recuperados entre uma gargalhada e outra ao conferir a confissão de algum(a) usuário(a) que confundia a letra de uma velha música do Hyldon na versão Kid Abelha: "Jogue suas mãos para o céu e a cabeça se acaso tiver".
Ah, sim. Naquele tempo, também colecionávamos amigos e testemunhos. Num dia difícil de trabalho, era confortável chegar em casa e reler as declarações de amigos e amores sobre como nos conhecemos e o quanto éramos importantes para eles.
Aqueles testemunhos economizaram meses de terapia ao fim da travessia para a vida adulta.
Até que um trator chamado Facebook tomou corpo com seu conceito de linha do tempo e transformou em botões os hábitos ancestrais de curtir e compartilhar qualquer porcaria. Os algoritmos entenderam a pegada e não demoraram para dissociar uma função da outra. Surgiram assim botões com expressões de raiva, tristeza e deboche (aquela gargalhada com lágrimas nos olhos não me engana; é uma declaração de guerra no pé da postagem). E, quanto mais detestáveis, mais chance de publicações prenhes de revolta aparecerem, como que do nada, em uma timeline onde a cronologia da publicação não definia a ordem do que deveríamos ver, e sim o seu potencial de engajamento.
Amigos, então, passaram a se unir em torno da repulsa a inimigos comuns. Como numa reunião de condomínio.
As alavancas do ódio e do cinismo pavimentaram a ascensão, olha só que surpresa, de figuras cínicas e odiosas.
Elas passaram a dar as caras também em plataformas como Twitter, espécie de fumódromo da balada onde reproduzimos condutas condenáveis longe do olhar dos adultos. Isso talvez explique também a ascensão de novos líderes armados do espírito ginasial.
O fundão da sala tomava o poder e nós nos infantilizávamos a passos de asno.
Não faz muito tempo, essas plataformas eram apenas um espaço onde compartilhávamos nossas músicas favoritas quando aquela lua e aquele conhaque nos deixavam numa sexta-feira à noite comovidos feito o diabo.
Até que algum cosplay dos primatas de "2011: Uma Odisseia no Espaço" percebeu que um pedaço de osso era também uma arma e decidiu desferir seu primeiro golpe numa caixa de comentários: "Odeio essa música, odeio essa banda, odeio você".
Como poucos ainda habitavam o velho Orkut, morto por asfixia diante das ferramentas de compartilhamento e dos algoritmos treinados e orientados para nos destruir rapidamente em outras plataformas, a impressão que levamos para a vida em rede dali em diante é que fomos expulsos, por livre opção, do paraíso. E esse paraíso tinha poucas fotos, baixa resolução e muitas declarações de apreço.
Pouca gente estava lá para testemunhar que o ódio era a palavra já onipresente nas comunidades remanescentes. Minha amiga Adriana Dias, antropóloga da Unicamp dedicada a pesquisar a ascensão de movimentos extremistas no país, lembra que foi ali que começaram a pipocar comunidades com manifestação de ódio a tudo e a todos. "Odeio maçã", "Odeio pisar de meia no chão molhado", "Odeio acordar cedo". Dali para a expansão das expressões de ódio contra comportamentos e grupos sociais foi um pulo.
A comoção em torno do possível retorno do Orkut, anunciado por seu criador, hoje contrasta com os temores de que Elon Musk transforme o Twitter, seu novo brinquedinho, numa terra de ninguém para onde serão também arrastadas todas as outras plataformas. Como o humorista Ricardo Araújo Pereira, eu também receio que, com a possível redução da ideia de moderação, aquela rede social se transforme em um território de acrimônia, difamação, rancor, ódio e desinformação. Será que aguentamos?
Na dúvida, e na impossibilidade de resgatar a autoestima com as lentes do Instagram que nos deformam e ampliam a grama verde do vizinho, há quem espere a volta do Orkut como quem retorna a Pasárgada. Lá ao menos somos amigos do rei e podemos deixar para ele mensagens fofas de bom dia pelo scrap.
Os saudosos (e eu sou um deles) que me perdoem, mas a revolução não será postada como testemunho. O Orkut é só o baile da saudade dos millennials que querem reviver em paz os hits dos anos 2000, quando éramos jovens e nas noites de São João havia alegria, rumor, cantigas e risos. Nada disso sobrou ao pé da fogueira virtual das vaidades.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.