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Nutella trancada em supermercado resume a nova realidade brasileira
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Lugar de ser feliz não é supermercado, cantava Zeca Baleiro muito antes de Clarice Falcão dizer exatamente o contrário numa conhecida propaganda da época da bonança.
Mas, nos tempos das vacas magras, lembro de ter dado boas risadas com uns amigos recém-saídos da adolescência que, numa noite de sexta-feira etílica, decidiram entrar numa rede 24 horas para reabastecer os canecos. Um deles, não exatamente conhecido pelo prumo e a prudência, viu na gôndola mais alta do setor uma caixa de Blue Label intacta e quis matar a curiosidade botando nela as mãos cheias de dedo, como se quisesse atestar a materialidade do próprio sonho.
A cena seguinte correu em câmera lenta. Ao menos é como ainda me lembro (e lá se vão uns bons 25 anos): mal ele encostou na embalagem, ela escapuliu e caiu rodando, arrancando gritos de desespero das poucas testemunhas insones àquela hora no corredor. Nem a venda coletiva de nossas almas pagaria pelo incidente.
Quando a caixa se espatifou no chão, o som oco da sequência produziu um alívio — e uma polifonia de gargalhadas indenizatórias daquele meio segundo de terror.
A garrafa, sabidamente, não ficava dentro da caixa nem ao alcance dos dedos paupérrimos dos bebedores de Corote dispostos a tocar ao menos uma vez na vida naquele ícone da ostentação ébria só para sentir a magia.
Bons tempos em que um uísque vendido a R$ 1.139,99 — pelo valor corrigido e pesquisado na manhã de sexta-feira (29) — precisava ser trancado para não ser furtado nem derrubado pela imperícia e o despreparo técnico da juventude brasileira.
Não é de hoje que defendo que no Brasil atual o supermercado virou a curva onde se encontram todos os ressentimentos e frustrações políticas nacionais. Não tem defensor apaixonado do atual governo que não sopre fogo pelas ventas ao saber do preço do mé, como se incorporasse o personagem do Mussum neste antigo quadro dos Trapalhões:
De um tempo pra cá, circular pelo supermercado é transitar num cenário pós-apocalíptico entre o sonho e a distopia. O sonho está na lista de compras. A distopia, na etiqueta dos preços.
Nesse cenário de guerra, os itens de maior valor, e não falo só do uísque de rótulo azul, precisam ficar longe da vista dos despossuídos que chegam ali com o dinheiro contado para o arroz e o ovo.
Uma reportagem recente da Folha de S.Paulo mostrou que carne, queijo, cerveja, refrigerante, chocolate e Nutella (Luccas Neto, corre aqui!) têm sido alvos cada vez mais frequentes de furtos nos supermercados. O prejuízo calculado pela associação do setor é de R$ 3,2 bilhões em 2021, uma alta de 15% em relação ao ano anterior — quando os preços andavam mais praticáveis.
O levantamento mostra que 54% dos crimes partem dos próprios clientes. Funcionários (25%) e fornecedores (20%) praticamente fecham a conta da rapinagem.
O sumiço das carnes embaladas a vácuo já havia sido percebido. Elas saíram há tempo das gôndolas refrigeradas e foram trancafiadas nos balcões, de onde a maioria agora só sai perto do vencimento.
Mas o caso da Nutella é sintomático da nova realidade brasileira. Uma rede precisou trancar os potes em uma prateleira próxima do caixa. Agora, para acessar seu creme de avelã, o cliente VIP precisa pedir para um funcionário detentor das sete chaves. O caminho até o caixa é agora acompanhado pelo olhar sanguinário do vigia.
Fico imaginando qual seria o destino da Nutella caso seguisse impunemente à vista e ao alcance das quadrilhas especializadas. Seria vendida nos semáforos a preços suspeitos? Ou anunciada em placas do tipo "compro e vendo ouro"? Oferecida por cambistas ao redor dos supermercados dizendo que na mão deles o ingresso para o paraíso do paladar infantil sai mais barato? Ou o potencial consumidor precisaria circular pelos becos do centro da cidade onde antigamente só entrava para buscar bicicletas, equipamentos eletrônicos e outras coisinhas sem nota fiscal?
Na dúvida, meu filho já foi avisado. Ou tem creme de avelã domingo em casa ou festa de aniversário. Os dois o Brasil não permite.
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