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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Fiel baleado é retrato do país que levou fanatismo político para o templo

O fiel Daniel Augusto de Souza, que viu o irmão ser baleado após lembrar que igreja não é lugar de pregação política - Lucas Diener/UOL
O fiel Daniel Augusto de Souza, que viu o irmão ser baleado após lembrar que igreja não é lugar de pregação política Imagem: Lucas Diener/UOL

Colunista do UOL

09/09/2022 04h01

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Faz uns anos que acompanho a rotina de professores amigos que precisam encarar a sala de aula à base de remédios por causa da virulência de pais e da direção.

Ansiosos e deprimidos, todos eles foram acusados em algum momento de "tomar partido", ao dizer absurdos como "o golpe de 1964 produziu 21 anos de ditadura, na qual os brasileiros tiveram sequestrado o direito de votar para presidente, e quem se opunha a isso corria o risco de ser preso, torturado, morto ou desaparecer".

A perseguição coincidiu com o fortalecimento de movimentos como "Escola Sem Partido", uma patrulha ideológica armada até os dentes para constranger quem supostamente milita em outro campo.

Fico imaginando o que os pais dos alunos desses meus amigos fariam se soubessem que algum professor ou professora constrangeu o corpo discente, dizendo que se houvesse bolsonaristas em sala de aula seria melhor, em nome de Paulo Freire, que saíssem de dez em dez para não tumultuar — junto com Jair Bolsonaro e o satanás.

Ou prometendo disciplinar o membro dessa escola que votasse no dito cujo. Ou descrevendo premonições de que, se os estudantes entregarem a nação à direita, o portão do inferno vai se abrir.

Pois é exatamente isso o que pastores estão fazendo em suas igrejas, com sinal invertido, ao pedir voto para o atual presidente nas eleições de outubro.

A confusão entre público e privado, humano e divino, já não choca em um país onde as celebrações do Dia da Independência são instrumentalizadas e transformadas em elogio à própria virilidade. O movimento "Igreja Sem Partido" não chegou ao púlpito.

Azar de quem ergueu as mãos e lembrou que aquele espaço sagrado deveria ser reservado a dar glórias apenas a Deus, e não a quem sai por aí espalhando santinhos e promessas usando o Santo Nome em vão.

No fim de agosto, em um caso emblemático sobre o estado de espírito de crentes e descrentes, às vésperas de mais uma eleição, um fiel baleou o outro na Congregação Cristã no Brasil de Vila Finsocial, em Goiânia, por causa de uma desavença política.

O irmão da vítima havia sido recriminado por pedir a um cooperador da igreja que deixasse a pregação política em curso para focar na atividade-fim de toda igreja: a palavra de Deus.

A liderança tinha acabado de pedir para que os presentes não votassem em partido de esquerda, em especial "o da bandeirinha vermelha".

O fiel foi chamado de rebelde e, dias depois, precisou se retratar diante do pregador, sob a supervisão dos anciões da igreja (um cargo equivalente ao de pastor).

A ideia era apaziguar os ânimos, mas faltou combinar com um músico daquela congregação, um cabo da PM que resolveu dar sua contribuição à paz de Cristo levando sua arma para o culto.

Aos gritos de "vagabundo" e parecendo possuído, segundo contaram as testemunhas ao jornalista Théo Mariano, o policial partiu para a agressão física. Os sopapos sobraram para o irmão do "fiel rebelde", que foi baleado. A reportagem mostrou que ele foi socorrido pelos bombeiros e levado a um hospital de Goiânia, onde passou por uma cirurgia e segue internado, sem previsão de alta.

O episódio exemplifica de forma didática como o fanatismo político, alimentado por pregações irresponsáveis, ultrapassa todos os limites e já provoca tragédias pessoais cada vez mais recorrentes nos espaços mais sagrados — a CCB era, até outro dia, um modelo de congregação apolítica e, portanto, avessa a encrencas do tipo.

Mas, por aqui, a noção de normalidade foi tão esgarçada que, para os padrões do Brasil de 2022, ninguém mais estranha que um fiel leve uma arma para o culto -e pior, sendo PM, demonstre não saber como (não) usá-la em suas desavenças pessoais.

Em nome de Deus, e da certeza de que Ele tem lado em uma guerra promovida pelas mesquinharias mais humanas, muitas catástrofes já foram produzidas pelo mundo. Por aqui, elas são orientadas por um nomeado Messias que promete "extirpar" adversários enquanto espalha armas, e mensagens de ódio, como se tivesse procuração para abrir e fechar as portas do céu ou do inferno.

O resultado é um país em que ninguém está a salvo. Nem nas ruas, onde eleitores são mortos em festa de aniversário e discussões por política, como aconteceu nesta semana em Confressa (MT), nem mesmo dentro da igreja, onde a paz e o amor ao próximo já são literalmente alvejados a tiros — como se não houvesse nada no livro sagrado entre os capítulos de Gênesis e os do Apocalipse.

Há uma mensagem ali no meio que precisa ser resgatada. E que não tem nada a ver com o que estamos testemunhando.

O encontro entre ativismo religioso e fanatismo político tem tudo para não dar certo. Principalmente quando o armamento está na base do discurso dito sagrado. Pode alguém colher uvas de um espinheiro ou figos de ervas daninhas? A pergunta está em Mateus, capítulo 7, versículos de 15 a 20.