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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Brasil que eliminou seus idosos na pandemia é escancarado no filme 'Carvão'

Maeve Jinkings vive uma mulher do campo em "Carvão", filme de Carolina Markowicz - Divulgação
Maeve Jinkings vive uma mulher do campo em 'Carvão', filme de Carolina Markowicz Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

06/11/2022 04h01

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É difícil assistir "Carvão", destaque da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e em cartaz desde quinta-feira (3) no país, sem fazer paralelos com o lado mais sombrio e perverso do chamado Brasil profundo.

Dirigido por Carolina Markowicz, o filme se passa numa área rural do interior paulista onde uma mulher (Maeve Jinkings) tem a difícil missão de administrar o trabalho doméstico, uma pequena carvoaria, a criação de animais e os cuidados com o marido, o filho e um pai doente que sobrevive à base de um cilindro de oxigênio.

Um dia, uma agente de saúde vai até o local e propõe uma troca.

O diagnóstico é brutal: aquele homem idoso não tem perspectiva de melhora. Não anda, não fala, não produz. É, em suma, um "vegetal" que, como a matéria-prima do carvão produzido nos fornos daquela propriedade, teria mais utilidade se fosse literalmente carbonizado.

O que a agente de saúde propõe é uma troca: o quarto escuro e claustrofóbico onde o doente dividia um beliche com o neto poderia servir como uma espécie de cativeiro para outra pessoa em busca de uma nova vida.

Essa outra pessoa é um traficante argentino, igualmente jurado de morte, que simulou o próprio assassinato numa chacina real para poder fugir.

A oferta em dinheiro é acompanhada por um alerta. Com o "leito" vago, aquele cilindro poderia ser usado por outro paciente.

O filme foi gravado em julho de 2021, num contexto de pandemia, em que o elenco precisava ser testado a cada dois dias, mas que já permitia a retomada das produções.

O confinamento do personagem serve como alegoria para os tempos em que a trama foi inspirada. A partir dali, qualquer contato social era um risco.

Pouco depois das filmagens, a TV Globo noticiou que funcionários de uma rede hospitalar com 550 mil clientes acusavam a empresa de distribuir remédios ineficazes e aplicar tratamentos experimentais sem autorização de pacientes, a maioria idosos, fraudar pesquisas e declarações de óbitos para liberar leitos a outros infectados pela covid-19.

"Olha só o que está acontecendo", disse à diretora a atriz Maeve Jinkings quando estourou o escândalo da Prevent Senior.

"Foi uma coincidência macabra", define Markowicz.

O espírito do tempo estava captado na tela.

"Carvão", assim como outra produção nacional premiada, "Marte Um", de Gabriel Martins, pode ser considerado um dos retratos mais bem acabados de um país que emergiu sob Bolsonaro.

Em comum, os filmes trazem o protagonismo de mulheres fortes e complexas. E também o olhar de uma criança sobre as ações, condenáveis ou não, dos adultos.

Mas há duas diferenças fundamentais na trama. Um se passa na região metropolitana de Belo Horizonte. Outro, em Joanópolis, no interior de São Paulo.

Esses cenários são desbravados pelas crianças da história de maneiras distintas. Deivinho, de "Marte Um", observa os adultos de baixo para cima, como quem projeta seu voo estrelar representado pela paixão por astronomia.

Jean, por sua vez, olha os adultos da casa de cima para baixo. O chão e o sofá onde os adultos vivem largados é onde rasteja a estatura moral de quem, visto de longe, parece, e só parece, cumprir todos os requisitos da tradicional família brasileira que vai à igreja, trabalha, carrega o Brasil nas costas, honra pai e mãe, obedece as normas do matrimônio — mas que, quando o assunto é dinheiro, não pensa duas vezes em lançar um ser humano para a fornalha.

Naquele quarto onde um segredo é trancafiado, a criança molda um caráter duvidoso enquanto amadurece. Ela embrutece e envelhece muito antes de chegar à idade adulta.

Durante boa parte do filme, aquela criança é o único integrante da casa capaz de se sensibilizar e dialogar com o avô, uma das muitas vítimas de um modelo econômico que divide o mundo entre sujeitos produtivos — os que têm porte de atleta e sobreviveriam a uma gripezinha — e os descartáveis.

O destino daquele homem destampa uma relação familiar e social baseada numa performance. É isso o que a criança da história aprende conforme aguça o olhar em direção aos pais.

Nascida em Bragança Paulista (SP), Markowicz conta que crescer no interior é como participar de um estudo sobre o comportamento humano. "Principalmente dessa performance social que não necessariamente corresponde à verdade de dentro da casa de cada um".

Spoiler: de perto, os personagens capazes de eliminar um integrante da família por dinheiro não são assim tão fiéis nem tão tementes às leis dos homens e de Deus.

Desde muito cedo a cineasta ouvia histórias de quem era casado e tinha casos extraconjugais. E também de pessoas que precisavam esconder a orientação sexual para evitar julgamentos.

"As pessoas tinham vergonha de ser quem elas eram e isso sempre me deixou fascinada", diz Markowicz. "Essa performance social, que te obriga a ser quem você não é, não deixa de ser uma agressão, uma violência."

Em Joanópolis, cenário da trama onde a diretora passou parte da infância, ela conheceu a história de uma mulher alta e forte casada com um homem alcoólatra, que performava ser um bom chefe da família, feliz e bem-humorado, e que precisava esconder que no dia a dia era a companheira quem pagava as contas e cuidava de tudo.

"Um dia fiquei sabendo que ela brigou e ameaçou de morte uma outra mulher. Como ela morava longe, sempre fiquei imaginando o que poderia acontecer. Essa foi a gênese da história, que se tornou uma história sobre a substituição de pessoas."

Essa história chega aos cinemas em um momento em que um país de base conservadora e agrária emerge das urnas, coloca Deus acima de tudo e passa a justificar qualquer atrocidade em nome de uma ideia de família unida.

"Tudo isso foi escalando a vontade de fazer essa história sobre os interesses pessoais que se apoiam em falácias para serem realizados."

A diretora reconhece que o filme subverte uma leitura romantizada do campo, quase sempre compreendida como um lugar de pessoas boas, doces e ingênuas. "Essa leitura é que é ingênua", diz. "As pessoas do campo são pessoas como as da metrópole, que tem lados bons, ruins, piores e melhores. Mas essa performance social, conservadora, é mais forte no campo. É só ver como foram as eleições no interior do Brasil. A base de apoio a Jair Bolsonaro ajuda a entender um pouco essa mentalidade do agroboy, do machismo tóxico, do apego às armas. E demonstra também uma certa hipocrisia."

Nesse universo, Markowicz fez questão de usar uma personagem feminina que pautasse tudo para subverter a ideia de que uma mulher conservadora é necessariamente doce, santificada e servil.

Pelo contrário, a protagonista vivida por Jinkings detém uma personalidade forte cujas ações determinam os caminhos da trama, para o bem e (principalmente) para o mal.

Em uma das cenas, a personagem, que mata as próprias galinhas do quintal para vender na cidade a iguaria ao molho pardo (ou seja, banhado em sangue), questiona o inquilino criminoso como é trucidar uma pessoa. O convívio entre eles é um curso de teoria aplicada.

"Sempre tive interesse em entender por que essas cidades pequenas são tão conservadoras, como a hipocrisia é fomentada e como as igrejas conseguem ter tanta força", diz.

O filme, que se converte aos poucos numa história de terror e suspense, é um esboço de resposta.