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'Marte Um': quem é o diretor do filme que vai representar o Brasil no Oscar

De Contagem (MG) para o mundo: Gabriel Martins e a inspiração nos personagens e situações do seu bairro - Divulgação
De Contagem (MG) para o mundo: Gabriel Martins e a inspiração nos personagens e situações do seu bairro
Imagem: Divulgação

Do TAB, em São Paulo

29/08/2022 04h01

Gabriel Martins resolveu desenhar quando foi confrontado com uma pergunta corriqueira para quem tem nove anos: o que ele queria ser quando crescesse? Traçou os detalhes: pessoas segurando refletores e câmeras em direção a um casal aos beijos, dentro de um cenário. Mais afastado, numa cadeira com os dizeres "Director Gabriel", ele se imaginou de boné e barba gritando no megafone. O balão de pensamento revela: "Realizei o meu sonho".

Ele não sabe bem o motivo que o levou a sentenciar o futuro tão precocemente. Em 1995, não havia nem sala de cinema perto do seu bairro em Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte. "Não sei se 'possível' era a palavra, porque de fato nunca foi uma coisa: 'ah, eu vou trabalhar com isso', mas meu pai e minha mãe nunca desacreditaram desse sonho", ele explica hoje, aos 34, enquanto emenda viagens de ônibus para divulgar seu primeiro longa-metragem solo na direção, "Marte Um" — e que agora vai representar o Brasil no Oscar.

O filme independente tem provocado reações emocionadas. Foi assim no tradicional Festival de Gramado, que se encerrou em 20 de agosto e deu a "Marte Um" quatro prêmios: melhor roteiro, melhor filme por júri popular, melhor trilha sonora, além do Prêmio Especial do Júri, por "trazer de volta o afeto", uma justificativa que vai ao encontro dos choros ao final da exibição no festival e por onde o filme tem sido exibido — num curto e batalhado espaço no circuito brasileiro. São apenas 33 salas.

O que se vê na tela é um clássico filme sobre relação familiar, no caso, os dramas e dilemas de uma família negra em Contagem, os Martins. O patriarca Wellington (Carlos Francisco) é porteiro e luta contra o alcoolismo. A mãe, Tércia (Rejane Faria), depois de um incidente acredita estar amaldiçoada. A filha mais velha, Eunice (Camilla Damião), estuda direito e planeja sair da casa dos pais para morar com a namorada.

Já o mais novo, Devinho (Cícero Lucas), sonha mais alto: ele quer integrar uma missão tripulada para colonizar Marte em 2030, o tal do Marte Um. Enquanto o pai deseja que ele se torne jogador de futebol, a criança prefere o céu — e seu ídolo, Neil deGrasse Tyson, astrofisíco norte-americano e negro. O que poderia ser ficção científica, para Devinho, é um plano tão plausível quanto o que teve o roteirista e diretor do filme aos nove.

O ator que interpreta a criança tem semelhanças com Gabriel na mesma idade. Ele também usava óculos, tinha um jeitinho nerd e treinava futebol na escolinha do Cruzeiro, a pedido da mãe.

"O Devinho é um espelho da minha experiência. Isso entrou no roteiro de forma menos consciente, mas no fim das contas virou algo central e diz sobre coisas muito próximas a mim: ter um sonho distante, mas uma convicção muito grande de que iria acontecer", explica."É o tipo de história que eu queria contar, a identificação que ela cria com o mundo."

Gabriel Martins se imaginou como diretor de cinema em desenho feito aos nove anos - Acervo pessoal - Acervo pessoal
Gabriel Martins se imaginou como diretor de cinema em desenho feito aos nove anos
Imagem: Acervo pessoal

O roteiro começou a ser escrito em 2014, em um momento de festa e euforia com a chegada da Copa do Mundo ao país, mas as filmagens só começaram mesmo em outro Brasil, o de 2018, mais precisamente na esteira da eleição presidencial que levou Jair Bolsonaro ao Planalto. O episódio é incorporado ao filme, que começa exatamente na noite da eleição.

Nenhum dos personagens comentam sobre o resultado das urnas ou as próprias inclinações políticas, mas o espírito daquele momento parece salientar suas urgências — como Devinho, que considera Marte um bom lugar para se morar no futuro. "A gente sem dúvida alguma está fazendo algum tipo de enunciado sobre o estado de espírito que uma mudança tão drástica no Brasil provoca. Eu evitei uma centralidade, porque era tão difícil naquele momento dizer o que o Brasil iria ser. Isso torna a existência dos personagens mais urgente", observa Gabriel.

O filme reconstrói o ambiente familiar tipicamente periférico, entre afetos e perrengues, sonhos e limitações — uma costura de experiências que não se limita à casa do diretor. "Tem uma relação com meu pai que já passou por questões muito duras, de às vezes não conseguir me comunicar muito com ele, mas acima de tudo, tem uma observação para uma família mais expandida, que não é só da minha casa, mas a casa dos meus tios, dos meus vizinhos."

Esse olhar tem levado Gabriel e seus sócios da produtora mineira Filmes de Plástico a festivais internacionais como Cannes, Locarno e Rotterdam, somando mais de 50 prêmios. Os filmes mais celebrados da produtora, como os longas "Ela Volta na Quinta" e "Temporada" (dirigidos por André Novais Oliveira), "No Coração do Mundo" (de Gabriel e Maurílio Martins) e agora em "Marte Um", são sempre feitos de forma independente, com os moradores da região trabalhando atrás e na frente das câmeras e os sócios alternando-se em diversas funções.

Em comum, os filmes registram cenas de um microcosmo dos bairros periféricos da região de Contagem, como Amazonas, Milanez e Jardim Laguna, embora não estejam presos à cercania. "A gente pode fazer filmes em qualquer lugar, mas tem coisa que transcende o bairro. É um estado de espírito, falar de personagens nessa condição de algum tipo de marginalidade, que não é o lugar central das narrativas, personagens que ocupam lugares para os quais o mundo não está olhando", diz Gabriel.

Cenas de 'Marte Um' - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação
Cenas de "Marte Um" - Divulgação - Divulgação
Cenas de "Marte Um"
Imagem: Divulgação

Entre o busão e o carro de som

Gabriel Martins se parece com o desenho que fez de si aos nove anos. Tem cabelo e barba grandes e sorri com frequência, apertando os olhos. É dessa forma, bem à mineira, que ele fala dos novos objetos em cima de um móvel em seu apartamento em Belo Horizonte. Sob o olhar do sambista Cartola, em retrato emoldurado na parede, os três Kikitos, como são chamados os troféus de Gramado, têm um brilho diferente.

"Marte Um" já havia sido exibido no badalado festival de Sundance, dedicado a filmes independentes, e no festival de Toulouse, na França, mas estreou no Brasil no tradicional evento gaúcho. "Foi uma coroação para dar energia nessa semana tão difícil e maluca de lançamento", diz.

É quarta-feira (24), véspera de estreia e único dia da semana em que conseguiu estar em casa. Há dias, ele tem viajado para São Paulo e Rio de Janeiro, para participar das primeiras exibições. Vai sozinho, sempre de ônibus. Naquele dia, enfim era a vez de estrear em sua cidade natal. Com uma divulgação feita na raça. "Marte Um" chega aos cinemas num momento de ausência de programas de fomento. Mesmo com o filme celebrado, ele diz não ter nenhum projeto à vista. "Não somos ricos, não temos uma rede de apoio financeiro grande, realmente a gente corre todo dia pra pagar as contas. Tenho roteiros, mas sei lá quando vou conseguir grana para lançar o próximo", ele lamenta.

Para chamar atenção dos moradores de Contagem, o diretor decidiu botar um carro de som nas ruas anunciando a exibição especial. "É um trabalho de formiguinha", diz.

Gabriel cresceu ali, entre os bairros Milanês e Coqueiros, na divisa de Belo Horizonte, quando tudo era realmente mato. Como muitos subúrbios pelo Brasil, nasceram em lotes de terrenos e ruas de terras identificadas apenas por números.

"Era o loteamento de um grande sítio, o lugar possível para comprar um terreno, Minha infância foi nessa região, com a casa sendo construída aos poucos. Eu realmente vi a periferia crescer. Hoje é um bairro super complexo, cheio de comércio, com um shopping próximo, mas quando eu cresci o ônibus demorava horrores pra passar", se recorda. "É doido porque é uma mistura muito grande de famílias, tem as que conseguiram mais dinheiro, construíram casas melhores, e outras que vivem no perrengue e são vizinhos."

Os Martins da vida real também são quatro: o irmão mais velho, o pai que trabalha numa cooperativa de crédito e a mãe professora e costureira. Foram eles que levaram Gabriel, aos 12 anos, ao Festival de Cinema de Tiradentes, onde fez oficinas e viu pela primeira vez um filme brasileiro. Era "Bicho de Sete Cabeças" (2000), de Laís Bodanzky. "Eu fiquei maluco com aquilo. Entender que havia atores que se transformavam, aquilo fez sentido pra minha cabeça."

Com 17, fez o primeiro curta na Escola Livre de Cinema, onde conheceu André Novais e Thiago Macêdo Correia, que em 2009 se tornariam seus sócios na Filmes de Plástico. O quarto elemento coletivo surgiu na faculdade. Gabriel passou em primeiro lugar na Cidade Universitária UNA - Aimorés e conseguiu bolsa integral. Caiu na sala de Maurílio Martins e a identificação foi imediata. "A gente vai sentindo mais urgência em descobrir imagens realmente novas ali, é um combustível que até hoje nos alimenta", diz.

Por trás da Filmes de Plástico: Maurílio Martins, Gabriel Martins, Thiago Macêdo Correia e André Novais Oliveira - Leo Lara/Universo Produções - Leo Lara/Universo Produções
Por trás da Filmes de Plástico: Maurílio Martins, Gabriel Martins, Thiago Macêdo Correia e André Novais Oliveira
Imagem: Leo Lara/Universo Produções

As histórias nascidas na margem têm ecoado de forma emocionada até fora do país. "Na França teve pessoas que não conseguiram conversar comigo porque estavam muito emocionadas e, no Brasil, esse sentimento se multiplicou", ele conta, tentando entender as reações. "A gente viveu uma pandemia, uma sensação de terra arrasada e acho que 'Marte Um' traz uma espécie de crença mais atenta ao ser humano, um sentimento de perseverança e resiliência."

Orgulhoso, Gabriel diz que o filme lembra as obras que o emocionaram na adolescência, quando o sonho de ser diretor começava a se desenhar de fato, para além da folha de papel. "Pega num lugar da emoção, de filmes que eu amo, como 'Cinema Paradiso' e 'Central do Brasil', nos quais parece que a gente viveu a jornada com os personagens. Felizmente, acho que a gente conseguiu."