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Mataram minha família e fui fazer cinema: o luto de Cristiano Burlan

Cineasta Cristiano Burlan no Jardim Romano, extremo leste de São Paulo, cenário do seu novo filme, "A Mãe" - Carine Wallauer/UOL
Cineasta Cristiano Burlan no Jardim Romano, extremo leste de São Paulo, cenário do seu novo filme, "A Mãe"
Imagem: Carine Wallauer/UOL

Do TAB, em São Paulo

29/07/2022 04h00

É dia de sol a pino no Jardim Romano, extremo leste de São Paulo, e a imagem de Cristiano Burlan contrasta com o cenário de terra batida, onde crianças de chinelo soltam pipa à beira da várzea do Rio Tietê. De bota, calça e jaqueta jeans, camiseta preta e óculos escuros, ele sorri e evoca o cantor americano Johnny Cash, conhecido por se vestir sempre de preto. "Diziam para ele: 'parece que você vai num velório'", conta. "É um pouco isso comigo."

A paisagem de fundo é típica de muitas periferias e foi sua vista desde criança. Burlan cresceu no outro limite da cidade, no Capão Redondo, bem no final dos anos 1980, época em que a região integrava o chamado triângulo da morte — junto com Jardim Ângela e Jardim São Luís. "Eu podia estar debaixo da terra, perdi mais de doze amigos assim."

Naquela época, ele lembra, o que dava mais paúra era encontrar a Rota à noite. "Eles atiram e depois perguntam quem é. Isso era muito comum e continua sendo. Foi nesse lugar que eu acabei me criando, nesse círculo de violência e pobreza, mas naquela época não tínhamos câmeras", observa.

As imagens registradas apenas na memória são muitas. Burlan presenciou assassinatos, teve dois irmãos presos — o último foi libertado há dois meses — e viveu tragédias profundas na família.

Em um intervalo de dez anos, perdeu o irmão Rafael, morto com sete tiros aos 22 anos, "por uma quadrilha que na época não era chamada de milícia", ele explica. O pai alcoólatra morreu pouco depois, ao cair e bater a cabeça. Alguns anos depois, foi a mãe, Isabel, vítima de feminicídio, asfixiada pelo namorado na época.

A vida atravessada por perdas violentas fez sua irmã Kelly Cristina o indagar, aos prantos: "Todos [morreram] de maneira parecida, digamos assim. Então, eu não sei se é sina...", diz, procurando palavras. "Se eu e você, dessa maneira... Enfim". O desabafo perturba Burlan até hoje: a conversa foi filmada e está eternizada no premiado filme "Mataram Meu Irmão" (2013).

Cristiano Burlan é cineasta e faz filmes que se arriscam na linguagem e experimentam narrativas entre a ficção e a vida real. A maioria das produções é feita sem incentivo público, pouca grana do bolso e equipes enxutas. No geral, histórias sobre perdas — em especial, as próprias.

"Mataram Meu Irmão" faz parte do que Burlan chama de "trilogia do luto", iniciada em 2006 com o média-metragem "Construção", filmado num canteiro de obras em homenagem ao pai pedreiro.

Cineasta Cristiano Burlan no Jardim Romano, extremo leste de São Paulo, cenário do seu novo filme, "A Mãe" - Carine Wallauer/UOL - Carine Wallauer/UOL
Imagem: Carine Wallauer/UOL

'Esqueci o rosto da minha mãe'

A partir daí, Burlan fez de sua jornada dolorosa e íntima o alimento para o cinema. Após a obra sobre o irmão, lançou o documentário "Elegia de um Crime" (2018), em que busca reconstruir a imagem da mãe para além da foto dela morta, exibida na época em programas policiais na TV. "Eu passei a esquecer o rosto da minha mãe. No caixão, eu olhava e não conseguia enxergar o rosto dela", relembra.

Por mostrar pessoas reais, falando de sentimentos reais e doloridos, proporciona uma experiência diferente da ficção ao público. Em cena, fotos de cadáveres sem nenhum filtro. Tanto Burlan quanto seus irmãos, sobrinhos, tios e amigos são filmados. Diante da câmera, eles choram, descrevem as pessoas, resgatam histórias. Tanta exposição lhe rendeu críticas: "É quando um crítico acaba com você e com sua árvore genealógica inteira", brinca. "Quando alguém morre de maneira abrupta, você tem consciência da finitude e isso é pulsão de vida e morte. Por isso, talvez, essa certa compulsão por fazer filmes", observa.

No entanto, rechaça a ideia de que seus filmes sirvam de terapia. "Não tem nada a ver com sublimação e resiliência. Eu nem quero ser curado. Gente curada é chata pra caralho", diz. "Mas é uma maneira de eu respirar e arejar esses lugares. Você não passa por esses lugares de luto, pobreza e violência impunemente. Mas terapia sairia mais barato."

Hoje, aos 46 anos, prefere ver sua câmera como uma arma. "Filmar, para mim, é um ato criminoso. Ninguém filma ou é filmado sem pagar um preço."

Cineasta Cristiano Burlan no Jardim Romano, extremo leste de São Paulo, cenário do seu novo filme, "A Mãe" - Carine Wallauer/UOL - Carine Wallauer/UOL
Imagem: Carine Wallauer/UOL

Na ficção

Burlan pisa no chão salpicado de pedaços de tijolos e telhas em um dos becos. Subitamente, põe a cara dentro de uma das casas: "Tudo bem? Como está a senhora?". É conhecido na área. Muitos moradores trabalharam como figurante ou na produção de seu mais novo filme, "A Mãe".

O Jardim Romano se tornou a principal locação desde sua colaboração no grupo de teatro Estopô Balaio, incrustado no coração do bairro. Hoje, tem andado mais por ali do que no Capão da infância. "Um dos caras que mataram meu irmão agora está solto", ele diz. "Não posso voltar lá agora."

"A Mãe" é seu 18º filme, um dos poucos feitos com incentivo público. Já passou na Espanha e tem sua primeira exibição no Brasil no próximo dia 12, na competição do Festival de Gramado. Apesar de ser gaúcho, é a primeira vez que ele vai pisar na tradicional premiação do cinema brasileiro e na cidade turística do Rio Grande do Sul. Comemora, mas faz questão de ressaltar: "Também não é nenhum Homem-Aranha."

Na ficção, a atriz veterana Marcélia Cartaxo interpreta Maria, síntese de tantas mães que, de uma hora para outra, tem que lidar com o desaparecimento do filho. Burlan se inspirou na peça "Antígona" e nas Mães de Maio, movimento que surgiu em 2006, na esteira da resposta violenta da polícia nas periferias aos ataques do PCC. "Eu me alimento de pessoas. A luta pela sobrevivência, isso eu acho foda. Eu não faço filmes sobre morte e tragédia, são meios para falar da vida", observa.

Marcélia Cartaxo em cena de "A Mãe" - Divulgação - Divulgação
Marcélia Cartaxo em cena de "A Mãe"
Imagem: Divulgação

Pequenos delitos

Há muito da sua vida nos personagens da ficção. Ele sabe que poderia ter tido o mesmo fim do irmão Rafael, que também entrou na onda do crack nas periferias nos anos 1990 e 2000. "Até os 14 anos, eu cometi alguns delitos, mas nunca matei ninguém. Nunca fui violento com ninguém. Você é resultado daquele ambiente."

Já foi pedreiro, metalúrgico, limpador de fossa, mas foi vendendo bala na USP (Universidade de São Paulo) que teve o primeiro contato com teatro. "A literatura e o teatro mudaram minha vida. Desperta curiosidade e você pensa o que tem lá fora? Será que a vida é só isso: comer mal, brigar em casa, ver amigos sendo mortos pela polícia, começar a usar drogas e fazer umas fitas em butiques no Itaim?", diz.

Foi aluno da Academia Internacional de Cinema, mas acabou expulso porque não pagava a mensalidade. Voltaria anos depois, convidado a dar aulas. Hoje é professor na Escola Célia Helena, em pós-graduação em dramaturgia, e tem um grupo de teatro, a Cia dos Infames.

O cinema só virou profissão após a morte do irmão. Quando foi lançado em 2013, "Mataram Meu Irmão" ganhou o festival "É Tudo Verdade" e o Prêmio Governador do Estado de São Paulo. Diante do governador Geraldo Alckmin, notou a ironia: "O estado que matou meu irmão me deu um prêmio por fazer um filme sobre ele", relembra. Ele conta que o prêmio, pesado, já serviu uma vez de apoio na cama, quando um dos pés quebrou.

Cena do filme "Mataram Meu Irmão". Ao centro, com camiseta preta, Rafael, irmão de Cristiano Burlan - Divulgação - Divulgação
Cena do filme "Mataram Meu Irmão". Ao centro, com camiseta preta, Rafael, irmão de Cristiano Burlan
Imagem: Divulgação

"Mataram" levantou muita discussão. Recebeu tanto convite para ser transformado em série (que ele negou) quanto ameaça de morte por policiais militares aposentados.

Quando é exibido na TV, geralmente no Canal Brasil, chovem mensagens nas redes sociais de pessoas com relatos e lutos parecidos. "Quando sai do escopo do cinema, sai do meio, é muito poderoso", diz. Apesar de conectado, ele só sai de casa com um celular simples, sem internet. "Parei de ler como eu lia antigamente. [Rede social] para mim é como ir na vídeo locadora sábado a noite, quebrar o pau, passar duas horas e não alugar o filme."

Sempre que possível, ele lança mão de citações de cineastas e escritores para explicar seu processo no cinema. Diz ter uma vida privilegiada, mas faz questão de desconstruir qualquer ideia de genialidade e elitismo que flutuam nesse meio. "[O dramaturgo alemão Bertolt] Brecht dizia: primeiro vem a barriga. Esse ano eu quase voltei a trabalhar como garçom, a pandemia me fodeu. Não filmei nada, só comi, cuidei dos gatos e vi filme ruim."

Nesse momento de projetos suspensos, recebeu o telefonema do seu sobrinho, filho do irmão morto. O rapaz, que aparece na última cena do filme, disse ao tio que não gostava mais daquilo e perguntou se poderia ser cortado. O tio explicou que o filme já está no mundo, não conseguiria cortar a cena. Ainda assim, foi um golpe. "Como se estivessem falando: 'Pô, você está falando da morte do seu irmão e pensando em cinema?'", diz.

Isabel e os filhos: cena de "Elegia de um Crime" - Acervo pessoal - Acervo pessoal
Imagem: Acervo pessoal
Cenas de "Elegia de um Crime". Acima, Isabel com os filhos. Abaixo, Cristiano Burlan conversa com a irmã Kelly Cristina - Reprodução - Reprodução
Cenas de "Elegia de um Crime". Acima, Isabel com os filhos. Abaixo, Cristiano Burlan conversa com a irmã
Imagem: Reprodução

'Achei que a tragédia tivesse acabado'

Durante as filmagens de "Elegia de um Crime", o processo foi ainda mais doloroso. Burlan apareceu mais diante da câmera, chorando e hesitando revisitar o passado. "Ver a imagem da minha mãe morta todo dia na montagem me destruiu. Eu senti o baque. O que mais me pegou foi a impossibilidade de ir além."

Em certo momento do filme, ele descobre que o assassino da sua mãe está à solta e vai atrás de seu paradeiro. Também se filmou praticando tiros, dando a entender que estava movido por outro sentimento: a vingança. "É o filme em que eu fui mais longe. A sensação é que eu olho pra arrebentação, mas não tenho coragem de atravessar."

A trilogia do luto pode ter terminado, mas as buscas se desdobraram em outras. Nas filmagens de "Elegia", conversando com familiares, o diretor descobriu que havia sido adotado.

Burlan nasceu em 1975, foi deixado na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, onde até o início do século 20 bebês eram abandonados numa espécie de roleta, que ligava o exterior às dependências da instituição: a chamada roda dos excluídos. A mãe o adotou quando perdeu uma filha recém-nascida, mas nunca revelou a verdade ao filho.

A pesquisa está no início, mas já aponta possibilidades. Ele pode ser uma das crianças apropriadas por militares durante a Operação Condor ou fruto da relação entre um caminhoneiro e a filha de uma família abastada da região. Ela teria dado o bebê à Santa Casa e se suicidado em seguida.

Histórias que desconcertam o ouvinte, mas que Burlan conta com calma, pontuando com sorriso e humor. "Eu achei que a tragédia tivesse acabado. É essa minha busca agora, saber quem são meus pais biológicos", diz.

É um dos seus próximos projetos no cinema. "Em alguns filmes, a sensação que eu tenho é que a gente quase toca a vida", diz, pensativo, desistindo de teorizar sobre seu trabalho — e seus lutos. "Mas eu não sei. Eu fiz filmes e são só filmes. É só um trabalho. Como outro qualquer."

Cineasta Cristiano Burlan no Jardim Romano - Carine Wallauer/UOL - Carine Wallauer/UOL
Imagem: Carine Wallauer/UOL