Aly Muritiba, o ex-agente penitenciário que pode levar o Brasil ao Oscar
O cineasta baiano Aly Muritiba pode chegar ao Oscar. "Deserto Particular", dirigido por ele, foi escolhido o representante brasileiro para concorrer ao prêmio de melhor filme estrangeiro. A escolha foi anunciada nesta sexta-feira (15) pela Academia Brasileira de Cinema.
Ele nunca botou fé que seria diretor e roteirista por muito tempo. Sabia que o cinema nacional vive de ciclos e crises — e nada mais natural que ele fosse o próximo a rodar.
Enquanto a pandemia fechava salas de cinema e a crise política no setor cultural se aprofundava, Aly teve seu ano mais profícuo. Mandou às favas um mandamento do ramo, de que tocar muitos projetos ao mesmo tempo só pode dar errado, e mergulhou na montagem simultânea de dois filmes, "Deserto Particular" e "Jesus Kid", além do sucesso no Globoplay, a série documental "O Caso Evandro".
Não era o plano inicial, mas editais e verba foram liberados todos de uma vez, pouco antes da quarentena. Filmou tudo na sequência. "Como eu acho ainda que isso a qualquer momento vai acabar, aproveito tudo ao máximo", diz.
Os frutos também vieram sem intervalos. Em agosto, havia acabado de embarcar na pré-produção de uma série da Amazon, no sertão da Paraíba, sem sinal de celular, quando "Jesus Kid" ganhou três prêmios no Festival de Gramado. Pouco tempo antes, "Deserto Particular" foi anunciado numa mostra dentro do famoso Festival de Cinema de Veneza. Só aí pediu licença do trabalho para viver alguns dias de filme e praia. "Não é todo dia que você tem um filme em Veneza", resume.
Apesar da pompa do evento, circulou de chinelo e deu entrevistas com o corpo de sal e pique de surfista, cabelos compridos e descoloridos, depois de pegar uma praia. As histórias que ele narra sobre a experiência envolvem contar moedas para comprar um aperol spritz e o clima de "empáfia" nas festas e encontros com diretores.
Se antes usava chinelos nessas ocasiões por marra, hoje diz que o faz como um projeto de vida. "É praticamente uma ferramenta para me preservar do deslumbramento, porque venho muito de baixo. Não venho de uma elite, meu inglês é canhestro, meu sobrenome não é Meirelles, não é Salles", diz. "Quero que as pessoas olhem para mim e se sintam à vontade de oferecer uma Brahma."
Aplaudido ao final de sessão, "Deserto Particular" saiu com o prêmio do público.
A mise-en-scène para frequentar esses espaços, no entanto, não foi aprendida dentro de cineclubes nas horas livres, mas de alguma forma, dentro da Casa de Custódia de São José dos Pinhais, no Paraná, onde trabalhou como agente penitenciário. Por sete anos, Aly acompanhou personagens e cenas que as telas nem sempre conseguem capturar. "Acontece bem poucas coisas, mas a possibilidade constante do acontecimento te deixa num estado frequente de tensão", observa. "Acredito que eu tenha aprendido a fazer suspense na cadeia."
Os plantões dentro do presídio às vezes completavam 24 horas quando Aly descobriu, no estatuto de Funcionário Público do Estado do Paraná, que as horas poderiam ser abonadas caso coincidissem com o horário de estudo. Correu para se matricular em qualquer curso que começasse à tarde. "É a hora mais hardcore do presídio. Bota preso no pátio, leva o preso do médico, leva pro advogado. É um inferno e é muito perigoso". Só tinha uma opção: Cinema.
Poesia e Tela Quente
Após emendar Paraíba com Veneza, Aly Muritiba está de volta para Curitiba, onde mora com os filhos desde os anos 1990. A casa simples é decorada com paredes coloridas, plantas, chapéus de vaqueiro pendurados na sala ou no chaveiro e pequenos mandacarus — cuja folha ele tem tatuada no braço. "Tento me cercar de sertão ao máximo nesse lugar gelado", reclama.
Aly é de Mairi, município do sertão baiano, com quase 20 mil habitantes — e, até hoje, nenhuma sala de cinema. O contato com a tela grande se dava quando um circo itinerante vez ou outra se erguia ao lado da sua casa exibindo filmes antigos. A programação da Tela Quente e Sessão da Tarde completava a cinefilia.
Passou a infância escrevendo muito, o que o colocou num lugar de estranheza na escola. O porte atlético começou a ganhar forma nesta época, para evitar apanhar na hora da saída. "No cinema, a galera olha pra mim como um macho alfa, meio ogro. É uma questão de perspectiva. Na Bahia, até hoje, eu sou um viado. O jeito de eu me sentar, o jeito que eu prendo meu cabelo", diz, rindo.
Esse lugar da infância paira em "Deserto Particular", que narra a história de um policial afastado por violência que deixa o pai doente e a vida no Paraná e parte para a pequena cidade baiana de Sobradinho em busca de uma pessoa que ele conhece apenas virtualmente.
A viagem faz o personagem confrontar seus afetos e sexualidade, terreno que o deixou inseguro durante as filmagens. Hoje, ele resume assim a questão: "Eu acredito muito no lugar de fala, mas odeio o lugar de cala", diz. "Consegue expressar os dois mundos que eu habitei. O mundo baiano, o mundo curitibano. O mundo conservador, o mundo progressista. O mundo que quer prender e segurar e o mundo que quer fluir", observa.
Essa disputa está em muitos dos seus filmes. Com uma dose de suspense, personagens taciturnos e retraídos são confrontados com sentimentos fortes, seja a fixação de um homem que descobre a traição após a morte da esposa, em "Para Minha Amada Morta", ou as consequências da masculinidade tóxica na era das redes sociais em "Ferrugem". "Estou versando sobre o que é ser um homem capaz de amar no Brasil contemporâneo, mas incapaz de amar fora da chave patriarcal", diz. "Fui forjado nessa fornalha. Tenho tentado e feito com que meus personagens tentem escapar desse ciclo vicioso."
Entre trilhos e grades
A primeira parada após deixar Mairi foi São Paulo. Morou com uma tia, em Perus, cursou História na USP e trabalhou como operador de caixa de farmácia e bilheteiro de trem — um momento que, curiosamente, foi registrado em película.
Da cabine na Estação Berrini, viu pela primeira vez um set de filmagens. Uma produtora ofereceu R$ 50 para que ele aparecesse vendendo um bilhete ao protagonista. O filme era "De Passagem", de Ricardo Elias (2003). Na cena, entretanto, aparecem só as suas mãos. "Naquele dia, eu percebi que levava quatro horas para filmar vendendo um bilhete. Pensei: que galera lerda", diz, rindo.
Com 26 anos, já com um filho, se mudou para Curitiba, cidade da sua namorada à época. Prestou concurso público. Primeiro foi bombeiro, mas trocou para agente penitenciário pelo salário maior. Foi seu trabalho mais longevo antes do cinema. "Uma coisa que eu aprendi na cadeia é que se você desviar o olhar do preso, ele não te respeita. Amo e admiro Eduardo Escorel e Lina Chamie, com quem tive aulas, mas eles não seriam capazes de me ensinar o que a cadeia e a CPTM me ensinaram", observa. "É um grande desconstrutor de estereótipos e de estigmas."
Seu primeiro filme a viajar o mundo tinha aquele ambiente como cenário. "A Fábrica" teve como inspiração uma cena vista num dia de visita: uma avó apresentava o presídio para a neta como sendo o lugar de trabalho do pai detento e, os agentes, como se fossem nada mais do que colegas de ofício.
O filme foi o primeiro a aproximá-lo do Oscar. Entrou na lista dos finalistas para melhor curta-metragem em ficção em 2013, rendeu 60 prêmios internacionais e as primeiras viagens internacionais do então agente penitenciário. Vieram mais dois filmes com a temática: "Pátio" e "A Gente" — neste último, filmado em 2013, o cineasta se dividiu nas duas funções. "Rolou uma ocasião que eu estava em Dubai, subindo o Burj Khalifa no sábado, tomando um chá numa festa de encerramento, ganhando 40 mil dirhams, e na segunda-feira de coletinho, abrindo porta de cadeia."
Oito anos depois, enquanto atende telefonemas e entra em reuniões por Zoom para o próximo projeto, ele aponta o streaming como responsável por ainda estar "empregado". Nos últimos anos, Aly dirigiu e roteirizou episódios de "Carcereiros", "Irmandade", "Irmãos Freitas" e "O Hipnotizador".
Com "O Caso Evandro", conseguiu dar à história, abundantemente explorada no noticiário e no podcast de Ivan Mizanzuk, no qual a série se baseia, um novo desfecho, acompanhado por uma audiência grande. "A série me ensinou que um storytelling bem construído é capaz de transformar as coisas", comemora. "Eu já tinha feito muita coisa na vida, mas nunca tinha feito sucesso."
Apesar do prestígio e audiência, diz ainda ver o cinema como qualquer ofício. "Hoje em dia é algo que me remunera bem, me dá muito prazer e satisfação, mas antes de qualquer coisa eu preciso pagar o convênio da minha mãe que é caro pra caralho", diz, dias antes de embarcar novamente para a Paraíba.
"Se amanhã ou depois pararem de me chamar ou eu parar de conseguir aprovar projetos e ter grana, se precisar prestar concurso público novamente para trabalhar na cadeia, vou sem problema nenhum."
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