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'Não é filme da Marvel': como Digão Ribeiro ressignificou papel de bandido

No Festival do Rio, Digão Ribeiro faz performance para ampliar discussão do filme "Alemão 2" - Festival do Rio/Divulgação
No Festival do Rio, Digão Ribeiro faz performance para ampliar discussão do filme "Alemão 2"
Imagem: Festival do Rio/Divulgação

Do UOL, em São Paulo

29/03/2022 04h01

Era dia de première no Festival do Rio, em dezembro último. No Lagoon, cinema na zona sul considerado "chique" (e que fecharia as portas algumas semanas depois, devido à crise), o tapete vermelho atraía flashes, câmeras de TV e celebridades. Era a primeira exibição de "Alemão 2", sequência do filme de 2014 dirigido por José Eduardo Belmonte, em que a tensão no Morro do Alemão é o motor de uma trama de ação.

Astros do elenco, no papel de policiais, Vladimir Brichta e Leandra Leal davam entrevistas num cercadinho quando dois adolescentes entraram no espaço. Vestiam uniforme característico da rede municipal de ensino do Rio e mochila nas costas. Nas mãos, um guarda-chuva e uma embalagem de Pinho Sol - objetos que, fora daquele ambiente, ocasionaram mortes e prisões. Poucos notaram que outros trinta jovens se misturavam ali, até um uivo ecoar alto no hall. O grupo respondeu em uníssono: "aaaauuuu!". O público, majoritariamente branco, se calou, surpreso. Eram estudantes? Baderneiros? Um protesto? A equipe do filme nada sabia.

Vladimir Brichta, na premiére do Festival do Rio - Festival do Rio/Divulgação - Festival do Rio/Divulgação
Vladimir Brichta, na première do Festival do Rio
Imagem: Festival do Rio/Divulgação
De surpresa, jovens com uniforme de escola exibem Pinho Sol - Festival do Rio/Divulgação - Festival do Rio/Divulgação
De surpresa, jovens com uniforme de escola exibem Pinho Sol
Imagem: Festival do Rio/Divulgação

Os olhares logo se voltaram para a entrada do cinema. Um homem alto e corpulento caminhava com uma caixa de som. Usava capa, máscara de gás e uma coroa na cabeça. O vermelho do tapete ganhou outro significado quando grudaram no aviso de chão molhado o inscrito: "Cuidado: sangue no chão". O célebre funk "Rap do Silva", de MC Marcinho, tocava alto, enquanto jovens exibiam cartazes com nomes de moradores da comunidade mortos durante ações policiais. Só aí a assessora do filme entendeu: o líder daquele protesto era um dos atores do filme, Digão Ribeiro.

Como aprendeu no teatro, Digão reuniu os jovens antes em uma roda. O encontro aconteceu no posto de gasolina ao lado do cinema. "Não era um lugar de fala apenas meu", explica o ator. "Precisava elaborar com aqueles pequenos líderes e pensadores que vão propor a transformação e nunca esquecer as pessoas assassinadas."

O ato foi resultado da reflexão constante que o ator tem feito, desde quando topou emprestar seu rosto e corpo negros ao traficante Soldado naquele que é, até então, o maior filme do seu currículo. "Alemão 2" é um representante do chamado "favela movie", termo recorrente no início dos anos 2000, quando os dramas e a violência das periferias brasileiras inspiraram dezenas de grandes produções — e consequentes questionamentos sobre a representação desses lugares e seus moradores.

"Há uma pressão social para que a gente não faça mais esses papéis, que repreende muito esse lugar. Acho válido, mas tem portas que estão abertas e podem ser usadas para algo positivo", defende ele, ao comentar críticas de jornalistas e ativistas que recebeu ao topar o papel de um traficante. "Para um ator negro, o mercado de audiovisual é muito cruel. As pessoas falam que está começando a ter mercado, mas não tem muito papel ainda. Se você não tiver estratégia de jogo, plano de movimentação, você é engolido e atropelado", resume.

No Festival do Rio, Digão Ribeiro faz performance para ampliar discussão do filme - Festival do Rio/Divulgação - Festival do Rio/Divulgação
Imagem: Festival do Rio/Divulgação

Bolha de glamour

Três meses depois, no subsolo de um hotel de luxo em São Paulo, Digão pedia um tempinho para tomar café. Na última quarta-feira (23), jornalistas e influenciadores circulavam por ali para o chamado "press day" de "Alemão 2". O ator estava há duas horas falando sobre o filme, mas pulava no corredor com energia. Diferentemente de seu personagem, Digão é extrovertido e enche o ambiente com risos largos e braços e mãos em intensa gesticulação.

"Agora estou sentado do lado do Vladimir Brichta dando entrevista num lugar de igual para igual. Os repórteres sentam aqui e têm que me olhar, fazer pergunta", diz.

Vestia roupa casual: camisa branca entreaberta no peito adornado por colares e brinco prateados, e óculos de sol na cabeça. "Entrar nessa bolha traz uma sensação de glamour que não existe. O cinema não deixa ninguém rico. Minha realidade continua sendo na Cidade de Deus", explica.

O ator lembra que na noite anterior assistia ao filme cercado de moradores das comunidades da Maré, Gardênia Azul, Alemão e Cidade de Deus, num cinema no subúrbio do Méier. "Agora estou aqui num hotel onde vejo pouquíssimos como eu, para fazer pré-estreia para uma galera que eu não sei se vai ser da periferia. Só posso fazer isso saindo dessa bolha, voltar alguns passos, dar voz aos meus e trazer outras perspectivas."

Digão Ribeiro em cena de "Alemão 2" - Laura Siervi/Divulgação - Laura Siervi/Divulgação
Digão Ribeiro em cena de "Alemão 2"
Imagem: Laura Siervi/Divulgação
Digão Ribeiro nas filmagens de "Ursinho" - Divulgação - Divulgação
Digão Ribeiro nas filmagens de "Ursinho"
Imagem: Divulgação

Digão tem 27 anos e um currículo elogiável no audiovisual. A estreia aconteceu aos 21 anos, no drama social "Praça Paris", de Lucia Murat, com um personagem indicado ao prêmio de melhor ator do Festival do Rio. Desde então, coleciona personagens diversos, do jovem que busca sustento fazendo programa em saunas, no curta "Ursinho", ao amigo da turma de roqueiros de Brasília em "Eduardo e Mônica", passando pela cena de humor no YouTube, nas esquetes do grupo Parafernália.

O personagem em "Alemão 2" destoa, mas não é o único. Com "cara e pose de mau", como diz, fez bandidos nas séries "Impuros" e "Dom". "Já tinha imagens minhas atreladas a esse lugar, mas vem da necessidade de precisar trabalhar, mais do que querer dar voz àquela narrativa", justifica. "Vejo minha vizinha chorando por perder o pai, mas vejo também meu aluguel atrasado."

Onde a Marvel não tem vez

Digão Ribeiro nasceu e foi criado na Cidade de Deus, sob influência direta da programação infantil da TV. "Amava Xuxa", diz, numa gargalhada. "Eu sou gay. Talvez consumir Disney e as princesas falem de uma realidade que era desejada."

Aos 14 anos, estudou roteiro para novas mídias no Projeto Nave, na Tijuca. Manteve durante muito tempo a ideia de trabalhar atrás das câmeras, até ir parar num teste de teatro, quando ouviu do professor que ele era uma "estrela". Não teve dúvida. "Peguei o Fies e fui fazer licenciatura em teatro." Estudou na Escola Teatro Martins Penna, a mais antiga da América Latina. No movimento dos secundaristas em 2016, foi o líder da ocupação no espaço.

Nos últimos anos, morou apenas com a mãe, que sofria de câncer terminal. Como único provedor da casa, emendou cinco produções em 2018. "O salário de professor de teatro não dava", diz.

Quando a perdeu, no início de 2019, sofreu um bloqueio artístico. "Fiquei de fato sozinho, olhando minhas questões, me vendo no espelho como homem preto, enquanto homem que não se achava bonito. A partir daí, consegui ligar uma chave de responsa." Nessa hora, ele se emociona. "Desculpa, eu sempre choro. Sou muito sensível", diz, abanando as mãos em direção aos olhos.

Digão Ribeiro na pré-estreia de "Alemão 2" no Rio de Janeiro - Anette Alencar/Divulgação - Anette Alencar/Divulgação
Imagem: Anette Alencar/Divulgação
Digão Ribeiro na pré-estreia de "Alemão 2" no Rio de Janeiro - Anette Alencar/Divulgação - Anette Alencar/Divulgação
Digão Ribeiro na pré-estreia de "Alemão 2" no Rio de Janeiro
Imagem: Anette Alencar/Divulgação

Foi nesse momento que recebeu o convite para "Alemão 2", mas não se animou. Achava que os filmes sobre o tema não traziam um debate equilibrado. "Falava de um projeto criminoso que são as UPPs [Unidade de Polícia Pacificadora]. Era uma oportunidade que eu não queria tanto, mas que não podia negar. Tinha que bancar uma casa sozinho."

Confessa que fez um teste "mal feito". Quando passou, descobriu que seu personagem era o principal bandido da trama. No primeiro filme, o traficante principal foi interpretado por Cauã Raymond. "Não vamos ser hipócritas, se não fosse eu, seria outra pessoa", pensou. Levou o desafio para o set. Ao lado da atriz Mariana Nunes, propôs discussões para tocar o assunto de outra forma.

No primeiro dia de preparação, se viu numa sala de palestras só com policiais. No fim, levantou-se: "Eu não trabalhei hoje, meu personagem não é policial". No dia seguinte, uma gama maior de vivências passou a integrar o trabalho: uma socióloga da Maré, ex-presidiários, pesquisadores das próprias comunidades. "Eles foram topando nossos apontamentos. No fim, a gente conseguiu trabalhar com essa energia de estar fazendo uma parada maior, com mais responsabilidade e no coletivo", explica.

O olhar que Digão emprestou ao personagem ganhou outras camadas, mas era preciso ir além. Articulou discussões com movimentos culturais periféricos. Foi aí que a ideia da performance nasceu. "Era pra ser um grito coletivo pela falta de política de segurança. Isso não passa apenas por evitar que a gente morra de bala perdida, mas que possibilite de a gente ir e vir, tenha salubridade nas comunidades."

Havia uma simbologia no ato. Na cabeça, a réplica da coroa imperial, que ele nota nunca ter pousado na cabeça de um brasileiro. "Isso mostra como a gente não dá voz a quem realmente está no cerne da questão", diz. Já a roupa, criada pelo artista Rona, trazia retalhos de mochilas escolares, alvo de revistas policiais, mas símbolo de esperança. Ao seu lado, uma criança posava com um capacete dourado, como um príncipe de Wakanda. É seu filho, Kaian, 13. Dias depois, ele conta ter percebido efeitos na comunidade.

Ele recorda a cena de ficção em que um morador é atingido por uma bala perdida — e conta a história da morte do seu vizinho Marcelo Guimarães, com quem "dividia parede", atingido por um policial militar quando ia para o trabalho. Ao saber do ato no cinema, Vitória, a filha de Marcelo, questionou: "Queria que você tivesse me chamado".

Na pré-estreia de "Alemão 2", no Rio de Janeiro, Digão Ribeiro chama Vitória Gonçalves para falar do pai, morto pela polícia - Anette Alencar/Divulgação - Anette Alencar/Divulgação
Na pré-estreia de "Alemão 2", no Rio de Janeiro, Digão Ribeiro chama Vitória Gonçalves para falar do pai, morto pela polícia
Imagem: Anette Alencar/Divulgação

Na pré-estreia no Rio, no último dia 21, Vitória subiu ao palco ao lado do elenco. Em frente à tela, expôs para a plateia o luto ainda difícil de mensurar. O ator agora quer expandir a mensagem em debates antes das sessões. "Não tem como assistir ao filme e achar que está vendo um filme da Marvel. Eu sei qual a mensagem do filme, mas qual é a mensagem que fica pra vocês?", questiona. "É responsabilidade social com quem consome, com quem fica com as ideias do filme depois."

Com o cachê de "Alemão 2", Digão deu o pontapé em uma produtora independente: quer contar outras histórias e narrativas. Em paralelo, faz a dublagem de uma animação infantil para a Netflix e uma série para o Globoplay. "Quero fazer comédia, super-herói. Não desistir do meu sonho e ver que tem ondas mais positivas para surfar", observa.

Após a maratona de entrevistas, Digão pega o elevador do hotel rumo ao quarto: tem apenas uma hora para a próxima pré-estreia, agora na capital paulista. No caminho, perguntou para a equipe se haveria pessoas da periferia na plateia. Ninguém soube responder. Longe da sua comunidade e do seu círculo artístico, não haveria performance naquela noite. "Hoje vou dedicar o filme à minha mãe", responde, sorridente.