Maior maestro do cinema nacional, Remo Usai morre no fim de briga judicial
Remo Usai acreditava que a música nunca podia ser usada de forma aleatória; servia para contar histórias. "A música não impõe condições, ela propõe emoções", dizia.
Considerado o maior músico do cinema brasileiro, o maestro morreu na última quarta-feira (8), aos 93 anos, com um feito notável até hoje. Ao longo da carreira, compôs trilhas para mais de 100 filmes, dos sucessos de bilheteria como "O Trapalhão nas Minas do Rei Salomão" (1977) e "O Trapalhão na Arca de Noé" (1983), aos clássicos que melhor retrataram o Brasil, como "O Assalto ao Trem Pagador" (1962), de Roberto Faria, e "Mandacaru Vermelho" (1960) e "Boca de ouro" (1962), de Nelson Pereira dos Santos. "Era nosso Ennio Morricone, nossa maior referência", afirma o compositor e produtor musical Tim Rescala.
O vasto trabalho e a reverência dos pares nos últimos anos não reverteu necessariamente em dinheiro e reconhecimento. Longe do trabalho no cinema desde os anos 1980, Remo enfrentou penúria financeira e, na última década, um lento processo de demência senil.
Nos últimos anos, foi se esquecendo quem eram os filhos e netos. Só se lembrava da esposa Antônia e de um processo judicial que abriu em 1983, em busca do pagamento correto pela execução pública de suas obras nos filmes. "Ele não se esquecia disso. Ficou quase até o fim dizendo que foi a maior frustração da vida", conta a neta, Claudia Usai, ao TAB.
A disputa judicial travada com o Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição) se arrastou por quase 40 anos, envolveu troca de advogados com conflitos de interesse e uma particular dificuldade em quantificar quanto Usai deveria receber pelos direitos autorais. "Não se sabia exatamente quantas pessoas tinham assistido aos filmes dele. Naquela época não existia bilhetagem eletrônica", explica o advogado Marcel Silva Gladulich.
A saga teve fim apenas em 2021, quando o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro determinou em última instância o pagamento de cerca de R$ 3,5 milhões, referentes aos direitos autorais retroativos — processo que Gladulich diz ser histórico. "Remo foi o precursor na composição original para o audiovisual, isso não acontecia no Brasil. Um dos profissionais mais premiados não tinha dinheiro para pagar um plano de saúde e precisava da ajuda de amigos."
Quando finalmente o pagamento aconteceu, em agosto de 2021, Remo já estava com a saúde debilitada e não se lembrava de nada, "nem da palavra Ecad, que foi a última que ele esqueceu. Contamos, mas ele ficou meio assim, nada se acendeu ali", recorda-se Claudia.
O dinheiro, porém, veio em boa hora, a neta reconhece. Com a necessidade de acompanhamento de enfermeiras 24 horas por dia e as últimas internações já em hospitais particulares, os gastos foram exorbitantes. "É triste saber que demorou tanto para ele receber o que era justo."
Contador de histórias
Descendente de italianos, Antonio Remo Usai nasceu no Rio de Janeiro em 13 de maio de 1928. Estudou música desde pequeno e vivia no piano brincando de sonoplastia, simulando sons que representavam os movimentos de seus filmes preferidos da Disney.
Formou-se engenheiro agrônomo, por influência do pai, que pedia ao filho uma formação em paralelo. Chegou a trabalhar na área, mas a música era onipresente. Aos 28, juntou economias, vendeu um jipe e partiu para os EUA para um curso de música para cinema, na University of Sound Arts, na Califórnia. Seu professor era o famoso compositor de trilhas Miklós Rózsa, húngaro de estilo inconfundível que marcou clássicos de Alfred Hitchcock, como "Pacto de Sangue" (1944) e "Quando fala o Coração" (1945), e o blockbuster "Ben-Hur" (1959). Rózsa chegou a convidá-lo a ficar no país e trabalhar como assistente. Apegado aos pais, decidiu voltar ao Brasil.
Com o tio cinegrafista, Arturo Usai, conseguiu o primeiro trabalho em 1958, no filme "Pega Ladrão", de Alberto Pieralisi. No filme, Remo ajudou a contar a história do desaparecimento de uma relíquia da história do Brasil: um colar que pertenceu, certo dia, à Marquesa de Santos, amante de Dom Pedro 1º. O filme tem apenas uma cópia disponível, em processo de deterioração.
"O cinema brasileiro não estava acostumado a pensar música realmente para a imagem. As músicas eram mais sinfônicas, mas ele trazia coisas com uma textura mais enxuta, uma harmonia diferenciada, para realmente acompanhar a ação", explica Claudia Usai, que é formada em composição pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) por influência do avô, com quem morou na infância e adolescência, no bairro carioca Cosme Velho.
Música e silêncio
Remo logo se tornou requisitado, compondo para até cinco filmes por ano. A obra mais célebre é o coração de "Assalto ao Trem Pagador", quando o maestro promoveu o encontro da orquestra com a bateria de uma escola de samba — perfeito para contar a história de um assalto real que reuniu os homens da cidade e da favela.
Com metrônomo na mão, suou para fazer todos entrarem no ritmo. O resultado é impactante (abaixo, a cena de abertura e créditos do filme). "A sacada dele é levar para o instrumental o reflexo da realidade do filme, absorver o contexto. A música para ele deveria refletir o figurino, o cenário, o texto", explica o pianista Tim Rescala.
A trilha na época chegou a ser criticada nos jornais por usar instrumentos de cordas em cenas que se passavam no morro. Para Remo, o roteiro é quem ditava o ritmo. "Ele era um contador de histórias e gostava muito disso. Não é alguém que seleciona e bota só para não ficar silêncio."
Atuou também como o primeiro diretor musical da TV Globo, antes mesmo da inauguração da emissora, em 1965, mas tinha uma predileção pelo cinema, onde trabalhou até os 1980, quando a crise no mercado rareou as produções. Na mesma época, decidiu se dedicar aos cuidados dos pais, ambos doentes. A conjunção foi fatal. "Apareceu gente nova, muitos com quem eu trabalhava morreram. E assim acabou. O Reno morreu", ele mesmo diz, no curta-documentário "Remo Usai - Um Músico Para O Cinema", de Bernardo Uzeda.
A fala no filme é de alguém um tanto resignado, sentado ao piano que colocaria à venda nos anos 2000 para conseguir pagar as contas de casa. Amigo próximo, Tim Rescala comprou o instrumento para ajudá-lo, mas nunca o tirou da sala do dono original. Um de seus últimos trabalhos foi na animação "As aventuras da Turma da Mônica" (1982).
Bem-humorado e conversador, Remo só murchava ao falar da falta de reconhecimento, principalmente o financeiro. Mais nova que o processo, Claudia, hoje aos 28 anos, se lembra de outra chateação. "Quando alguém falava que ele fazia música americana, ele reclamava: 'mas eu faço música brasileira'."
A compositora hoje trabalha para colocar de pé o acervo do avô, resgatando e catalogando partituras, fitas de gravações e manuscritos, onde ele descrevia o compasso da música e o movimento do personagem. "Em certo momento, ele esquecia que aquilo era importante e rasgava. Temos coisas em pedacinhos aqui", conta. "Vamos tentar disponibilizar isso online para que mais pessoas tenham acesso, para ele continuar vivo e reconhecido de alguma maneira."
Nos últimos 15 anos, ganhou prêmios honorários e passou alguns anos dando aula no Conservatório Brasileiro de Música. E, mesmo com a doença avançando, era ativo no hobby de colecionar selos e na cadeira de rodas — "Nossa, ele era bom de roda", diz Claudia. No entanto, não viveu a emoção de saber que, finalmente, receberia os direitos autorais corretamente.
De domingo (6) para segunda (7), com dificuldade de respirar, Remo foi levado ao Hospital Adventista Silvestre, no Rio, com saturação e pressão baixas. Foi entubado com quadro de sepse pulmonar. No dia 9, durante o horário de visita, o ritmo cardíaco foi diminuindo na frente da neta.
No dia seguinte, após o velório no Crematório e Cemitério da Penitência, no Caju, Claudia se lembrava de alguns ensinamentos do avô. "Ele dizia que botar elementos demais não era tão bom; 'o silêncio é música no cinema', dizia. Música o tempo todo não era o correto."
O compositor deixa a esposa, Antonia Colacicco Usai, dois filhos, quatro netas, um acervo que contempla mais de 127 trilhas sonoras e uma vitória tardia na Justiça.
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