Com disputa e 'vogue', baile celebra 'boom' da cultura ballroom na pandemia
É noite de sábado (12) e uma massa de pessoas colore a calçada da Casa Natura Musical, na zona oeste de São Paulo, com laces, rostos maquiados, botas plataformas, luvas e looks. Elas subirão ao mesmo palco que já recebeu divas da MPB, como Maria Bethânia e Gal Costa. As atrações da noite são desconhecidas, mas estão na fila que se forma: homens e mulheres cis e trans, não-binários, drag queens e travestis. A diversidade chama atenção na região, acostumada a um fluxo um tanto normativo, caminhando entre prédios espelhados, homens engravatados e mulheres de tailleur.
É a noite da "Ball Vera Verão", baile que celebra a comunidade LGBTQIA+ em competições ruidosas e divertidas em torno de muito movimento, beleza e talento. Alguns ali entrariam nas disputas de dança, comportamento e desfile pela primeira vez — e muitos reviam os amigos ao vivo, após dois anos de pandemia. Os ingressos, gratuitos, se esgotaram em uma hora.
Na fila, teve quem veio apenas para assistir e torcer: entre eles, membros da comunidade hip-hop, simpatizantes. "Para mim, é como futebol. É até melhor", observa Leandro Castro, 20. Ao lado de dois amigos, ele conta que conheceu a cultura ballroom pela internet durante a quarentena e se interessou especialmente pelas competições de voguing, ou vogue, dança definida por linhas e poses.
Apesar da comparação esportiva, a competição aqui é artística e também conta com torcidas. Quem entra em campo são as "houses", defendidas por pais, mães e filhos com looks impecáveis ou coreografias. É o caso de Krystal Fokatruá, "mãe" da Casa de Dandara e da House of Ebony. Sorridente, ela organiza a prole como em uma excursão. Veio de ônibus de Niterói (RJ) com quatro "filhas", entre elas Feiticeira de Vênus, que carrega na bolsa maquiagem, roupas e adesivos dourados para o rosto.
É uma família alternativa, mas para muitos, a única. Ainda hoje, jovens expulsos de suas casas são abraçados pelos pais não apenas artisticamente. Feiticeira tem 18 anos e é um desses casos. "Sempre venho para cá com muita produção para passar o final de semana inteiro, mas minha mãe vai voltar amanhã, já", conta.
Os membros da House of Oricchi chegam uniformizados e carregam nos moletons seus nomes. No mezanino da casa, onde ficam geralmente os lugares mais caros da casa de show, eles juntam bolsas e malas e dividem entre si um pacote de biscoito enquanto o baile não começa.
"Galera do Nordeste está presente? E a do Sul?", pergunta, do palco, o mestre de cerimônias. Entre 18 e 26 anos, os Oricchis gritam, em resposta: eles são de muitas partes do país. "O mais importante é ajudar todos a estarem aqui", conta Rafaela, uma das filhas mais novas. "Mas vencer também é muito legal."
Prazer, sou 007
A cultura ballroom explodiu nos anos 1970 em Nova York, nas comunidades afro e latino-americanas LGBTQIA+. O nome principal era Crystal LaBeija, travesti que fundou a House of LaBeija em 1977 e se tornou uma figura materna para muitos jovens sem-teto.
Os bailes são mais antigos, mas se tornaram, nesse contexto, não apenas celebrações, mas espécie de abrigo para a comunidade se autoafirmar sem receio dos ataques que sofria nas ruas. Nascia ali um universo com linguajar, regras e humor próprios, que influenciam a cultura pop até hoje, em séries como "Pose" (Star+), realities como "Legendary" (HBO Max) e na música, desde que Madonna pegou emprestado os passos do vogue para um de seus sucessos.
No Brasil, a cena é bem mais recente. "A gente já organizava batalhas entre nós, mas foi só em 2015 que a gente consolidou a primeira ball", explica Félix Pimenta, um dos organizadores da Vera Verão.
Horas antes, ele corria de um lado para o outro do espaço: observava atentamente a iluminação e passava uma fita adesiva na beira do palco. "Bi, pega aquelas cadeiras bonitas, tem que lembrar que tem gente com mobilidade reduzida", instruía a outro componente. "A gente aprendeu a fazer de tudo aqui", explicou ao TAB.
Félix é dançarino, tem 32 anos e é da época em que caçava trechos do célebre documentário sobre a cena ballroom, "Paris is Burning", numa internet que ainda engatinhava. "Eram poucas cenas. Eu não entendia inglês, mas entendia a linguagem da dança", lembra. "A internet facilitou muito a descoberta da cultura. Antes, poucas pessoas detinham o conhecimento. Era uma fita VHS aqui, outro que viajou e soube dali."
A cena brasileira respeita certa hierarquia. Cada casa é um "capítulo" de uma House (casa) lá de fora — e eles estavam em peso na noite de sábado: House of West, House of Ninja, House of Xtravaganza, House of Milan e House of Escada.
Félix é pai da House of Zion, criada pelo norte-americano Pony Zion. Em 2016, o ícone da cena saiu do polo cosmopolita de Nova York para a quebrada do Jardim Nova York, na zona leste de São Paulo, para participar de uma residência artística. Deixou no país o capítulo aberto da sua história. "Você precisa entender quem são as pessoas, as nomenclaturas, a tradição que fundamenta a cultura das houses que começaram lá atrás", Félix explica. "Não se abre uma casa do nada."
Essas são regras da Ball Vera Verão, dedicada à cena chamada por eles de mainstream. A propagação da cultura nas redes sociais e em grupos de discussão, no entanto, fez nascer um novo fluxo, chamado de cena kiki — que, no vocabulário da comunidade, significa leve, maleável. Sem precisar se atrelar às grifes de fora, elas explodiram de vez durante a pandemia.
Estima-se que há 50 casas kiki abertas no Brasil. Seus membros estavam em peso no baile. Afinal, a competição era aberta para todos, incluindo os desprovidos de lar. Esses participantes são chamados de 007 — atuam sozinhos.
Aurora NB, 21, era uma delas e estava preparadíssima: tranças laranjas, collant preto transparente e bota até o joelho. "Vou esperar para ver as sincronias das gatas. Se não tem um cheiro de competição, eu vou. Não sou muito competitiva, gosto mais de curtir a vibe", defende. Veio do Rio de Janeiro com outros 007, como Levi, 24, com cabelo na régua, óculos Juliet e bermudão. Ele estava mais certo de que subiria ao palco na categoria "Transmasculine/o Realness".
Ao seu lado, ensaiando passos de vogue, Mavi, 25, com vestido de oncinha, explicou o boom de 007 no baile. "Muita gente conheceu durante a pandemia. Eu mesma conheci neste período", afirmou. "Aqui é sobre se jogar, sim, mas também sobre entrar com respeito à cena. É sobre vivências."
Bruno Oricchi, 25, overseer (espécie de supervisor) da House of Oricchi na América Latina, acredita que a cena vai aumentar com a volta dos eventos. "A gente é uma geração bombardeada de muita informação, mas que teve que repensar tudo com a pandemia. Muita gente se preparou nessa pausa. Foi um divisor de águas. Vejo no futuro eventos com um número bizarro de pessoas."
Grito, ovação e 'chop'
São 22h e o baile começa a esquentar com o show da rapper e poetisa paraibana Bixarte, integrante da cena ballroom de João Pessoa. O público está quente e reage batendo com a mão no próprio palco — um barulho que vai aumentar e ajudar a direcionar as 18 categorias apresentadas na noite.
Não há inscrições prévias: quando Félix anuncia o tema da vez, o público abre espaço para quem quiser subir ao palco. O caminho é feito sob gritos de guerra e o olhar de cinco jurados. Há apenas duas notas possíveis, 10 ou X (o chamado chop — corte, em português), mas inúmeras expressões faciais possíveis para indicar ovação ou decepção. O DJ solta a batida, acompanhada dos sons e palavras improvisados dos apresentadores, Félix e Elvira Zion. O público ovaciona, aos gritos.
Como prometido, Mavi sobe ao palco na categoria Baby Vogue, dedicada aos novatos da dança. Ganha 10, mas sai nas semifinais. "Fiquem espertos. Eles são babies. A gente vai ver todos eles muito daqui pra frente", avisa Félix ao microfone. Já na categoria "Joga a raba", ao som de funk, uma competidora aposta num passo arriscado e acaba batendo com a perna na cabeça de um jurado. Levou um chop na hora.
Na categoria Trans Face, quem compete precisa aproximar o rosto dos jurados com leveza e graça. Muitos passam os dedos levemente, marcando o desenho do rosto. "Face, face, face!", canta o apresentador em cima da batida.
A Ball Vera Verão começou em 2017. Ganhou o nome por ser sempre realizada no início do ano e para homenagear Jorge Lafond, ator e bailarino conhecido nacionalmente pela personagem Vera Verão, ícone do humor nos anos 1990.
"Era a época em que eu era criança. É uma oportunidade de ressignificar nomes que eram usados para ofender crianças viadas, pretas principalmente, jogadas nesse lugar de forma jocosa, para humilhar", observa Félix. "A forma como ela se colocava aí, era muito sobre hackear o espaço. Havia poucas pessoas pretas retintas e que não eram normativas. Há muitas leituras ali e o ballroom é sobre isso."
A lembrança de ícones da comunidade e a homenagem a ativistas que se foram são rituais essenciais numa ball. Assim como ações e campanhas de prevenção ao HIV. Uma van estacionada na porta aquela noite oferecia testes e informações sobre prevenção combinada.
Horas antes de o baile começar, Félix refletia sobre a emoção de rever o público e as houses após dois anos. Naquela edição, o recado estava claro no tema destacado nos troféus da noite: "Danças furiosas". Foi retirado de uma frase da escritora estadunidense Alice Walker, "tempos difíceis exigem danças furiosas". "Cada de um de nós é a prova disso", ele afirma. Sempre desenvolto e comunicativo, nessa hora ele demora a responder. "A emoção hoje? Está babado. Pode botar assim que todo mundo vai entender."
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