Vida dupla ou excomunhão: mórmons LGBT vivem dilemas entre a fé e o desejo
A estreia do BBB 21 no início do ano monopolizou os assuntos nas redes sociais, e não foi diferente em uma reunião com lideranças mórmons que aconteceu em fevereiro, em São Paulo. Havia uma inquietação quanto à presença de Gilberto Nogueira, que revelou no programa a homossexualidade até então escondida e a devoção pública à Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias.
Secretário de um dos líderes, Carlos* ouviu calado a preocupação dos presentes de que Gilberto se tornasse uma influência para outros mórmons. "Nessa mesma reunião, eles disseram: 'vamos orar para que ele saia logo e não manche o nome da igreja'", conta.
Carlos* ouviu muitas palavras duras a respeito de LGBTs em seus 24 anos de fé. Ele seguiu todos os passos de uma vida exemplar dentro da igreja: foi missionário, casou com uma mulher e teve um filho. O fim da relação o empurrou para um processo de descoberta do próprio desejo. Não dividiu com ninguém sua revelação. Por mais que as lideranças hoje se esforcem em dizer que a "igreja é para todos", tinha medo de enfrentar o conselho disciplinar — criado para discutir o futuro do irmão que tenha se desviado do caminho, seja por adultério ou por se relacionar com alguém do mesmo sexo. Seguindo as leis da religião, essas pessoas são consideradas apóstatas, alguém que se afasta da "Verdade".
No conselho, o bispado e o presidente de estaca (subdivisão geográfica semelhante à diocese) aconselham o pecador a se arrepender dos atos. Para voltar a ser recebido pela igreja, com direito às suas funções e bênçãos, ele deve abdicar do próprio prazer e, a partir dali, praticar o celibato. Quem não se arrepende diante do conclave tem o nome retirado dos registros da igreja. "Se a igreja descobrisse minha identidade, aconteceria da mesma forma", explica Carlos, com voz baixa e trêmula. "Eu deixaria de ser um membro exemplar para alguém que não vai ter acesso às bênçãos e às doutrinas que a igreja profere."
Entre memes e paredões no "Big Brother", Gilberto demonstrou ser um membro fervoroso. Ele acredita que sua missão no programa era mostrar que "Deus ainda falava com ele" mesmo sendo LGBT, mas também deixou escapar a preocupação sobre como a igreja vai recebê-lo ao sair do programa. Carlos conhece esse sentimento, mas é categórico: "Se ele voltar um dia, não vai poder fazer oração, não vai poder tomar o sacramento, não vai poder dar a opinião dele nas reuniões. Com certeza absoluta, eu te falo: ele vai ser excomungado."
No oposto à superexposição do irmão na TV, Carlos leva o que define como "vida dupla". Mantém com fé e prazer a rotina na igreja, mas também se diz animado com o rapaz com quem está saindo, um ex-pastor da Igreja Assembleia de Deus. "Estamos nos conhecendo", diz. No entanto, lamenta a vida repartida em dois: "A gente acaba perdendo nossa identidade ao aceitar isso. Por que é isso que nós vivemos dentro da igreja: uma mentira. Você vira um personagem."
Vivendo um personagem
O baiano Alexsandro Barbosa diz que viveu metade da sua vida atuando. " A Globo está perdendo", observa, com uma risada sarcástica. Vindo de berço mórmon, ele é a terceira geração da família a se dedicar à igreja. Aos 19, serviu à missão, rito considerado inaugural da vida mórmon, em que jovens vão a outro estado ou país espalhar a palavra do profeta Joseph Smith. Andam sempre de traje social e em duplas. "Mas não é porque se um cair o outro vai levantar. É uma testemunha. Você pensa: 'Não vou errar, porque o outro está vendo", observa.
Seu destino foi o interior de São Paulo. Estava noivo, mas, durante a viagem, recebeu a carta azul, como é praxe quando uma das partes quer terminar o relacionamento sob os olhos da igreja. Foi o que faltava para querer desbravar o mundo. "Ali dentro os olhos estão fechados, você não tem malícia. Você nem se permite. Eu já percebia que não gostava do sexo oposto, mas descartava esse pensamento porque era coisa do diabo", lembra.
No primeiro ato de rebeldia, foi ao cinema num domingo, dia considerado santificado, dedicado ao descanso. Na fila, conheceu um rapaz que o chamou para uma balada. Achava que estava fazendo amizade na nova cidade, mas parou na frente da Blue Space, tradicional casa noturna LGBT. Foi a primeira vez que virou um copo de Coca-Cola com vodca e que beijou um homem. Pecados demais para uma só noite. "É aquela coisa da maçã", ele diz, lembrando de Adão e Eva.
Apagou e acordou no dia seguinte desesperado, ao ver o rapaz na mesma cama. Estava atrasado para as obrigações sacramentais da igreja, mas agachou no banheiro com um espelhinho para ver se a região genital estava intacta. "Aquilo pra mim foi....", faz uma pausa como se tomasse fôlego. "Eu nem sei te explicar. Eu não lembrava de nada. Veio a culpa, a ressaca. Fiquei uma semana chorando porque achei que eu ia pro inferno." Essa sensação o acompanharia durante muitos anos, mesmo após começar a namorar com o rapaz. "Depois do sexo, parecia que tudo escurecia à minha frente", diz.
Só deixou de frequentar a igreja quando casou, em 2013, na esteira da decisão do STF que reconheceu a união homoafetiva. Convidou amigos fora da igreja e pediu para que ninguém publicasse fotos do enlace no civil. Não adiantou. No dia seguinte, a imagem de mãos dadas com o marido estava no Facebook, aberta para todos os irmãos. Sumiu da igreja da noite para o dia. Um mês depois, recebeu das mãos de dois emissários o convite do presidente de estaca para o conselho. Não deixou que eles entrassem em casa e aumentou o tom: "Diga que se ele quiser anular meu batismo e me excomungar, fique à vontade."
Hoje, Alex tem 41 anos, brincos na orelha, uma tatuagem de escorpião no braço direito e três cartas recebidas da igreja. Nunca aceitou porque diz seguir ainda os princípios básicos da religião. Casado há oito anos, ele quer constituir família e segue ajudando o próximo. Há mais de um ano, é o presidente brasileiro da Afirmação, ONG sem fins lucrativos criada há mais de 40 anos nos Estados Unidos como uma rede de apoio aos mórmons LGBTs.
O grupo não pretende ser um braço da igreja, nem inimiga. "Trabalhamos a autoaceitação, para que gays, lésbicas e trans possam viver sua espiritualidade da melhor maneira", explica. Ao seu lado na Afirmação, Cristina Moraes, 44, observa: "Algumas delas chegam em estado de extrema vulnerabilidade espiritual, física, emocional e às vezes financeira, porque foram expulsas de casa."
Ela é membro do conselho internacional da Afirmação e se lembra de quando atendeu a uma ligação de madrugada de um jovem aos gritos. Dizia que ninguém o entendia e que ia se matar. "Perguntei se ele era membro da igreja e ele disse que sim. Eu só consegui pedir pra gente orar antes de conversar. E foi só isso que o acalmou."
De 2008 a 2016, os casos de suicídio entre jovens mórmons mais que dobrou nos Estados Unidos, principalmente no estado de Utah, berço da religião. No Brasil, não há dados, mas a ONG quer estar presente no momento em que o mundo se descortina para um mórmon LGBT.
Convênio com Deus
Cristina é casada há seis anos e ouve até hoje da esposa: "Essa igreja sua só tem gay?" Ela ri e concorda: metade dos jovens da sua missão acabaram saindo do armário. "Não sei o que tinha naquela água", brinca.
Ela se converteu aos 17 anos quando ainda morava em Brumado (BA) e acabou passando por um conselho disciplinar quando confidenciou ao presidente de estaca que "pensava em mulheres".
Sua história segue como a de Alex e tantos outros LGBTs: desistiu do noivo oito dias antes do casamento ser selado no templo e passou a frequentar outras alas da igreja para evitar criar vínculos e responder à pergunta que se repetia: "E aí irmã, não tem ninguém novo em vista?".
Foi também a partir de uma foto do seu casamento, anos depois, que a vida tão bem escondida transbordou para o lado de lá da igreja. Deixou a igreja, mas continuava se punindo. "Eu me sentia suja. É um sentimento que te destrói todo dia, gota a gota", ela diz, mostrando as fotos da época no celular. "Eu não saio sorrindo em nenhuma delas." O telefone de repente toca e ela solta um riso: "Oi amor, estou numa entrevista, já já eu te ligo".
Foi a esposa que um dia jogou na mesa que a mulher não tinha uma vida completa de nenhum dos lados. Cristina então foi orar e sentiu a revelação tão propagada na doutrina mórmon. "Pra quem não é religioso, é algo inimaginável, mas eu senti algo bom dentro de mim, como se Deus falasse: 'chega de sofrer e chorar o dia inteiro'."
Alex nota que Cristina é a mais "crente" de todas na ONG. Ela confirma que até hoje usa seu garment, vestimenta sagrada que os membros colocam por baixo da roupa. " Realizei meus convênios com o Pai Celestial, meu acordo é com Ele, não com os homens", justifica. "Ao contrário de muitos, não guardo dor da igreja. Se eu pudesse ser aceita como eu sou, a pessoa que mais ajudaria a igreja hoje seria eu."
Nessa nova missão, ela visita outros países para ampliar o trabalho da ONG. A ideia é estar próximo de pais e familiares de mórmons LGBTs, mas também manter um diálogo com a própria igreja. Ela mostra orgulhosa a foto em que ela e Alex aparecem cercados de lideranças mórmons, no principal templo da igreja em Salt Lake City, em Utah. Naquele dia, conseguiram recursos para o programa de prevenção a suicídios e se reuniram com o secretário-geral do profeta atual para falar sobre seus relacionamentos e suas espiritualidades. "Ele até chorou, disse que o Senhor estava preparando algo pra nos responder, porque a igreja não estava preparada ainda", conta Cristina. No Brasil, Alex diz que esse diálogo ainda engatinha e fica preso ainda em preconceitos enraizados na sociedade. "O Senhor já aceitou a gente como a gente é, o problema são os homens da igreja", acredita. O TAB entrou em contato com a igreja no Brasil para falar sobre o tema, mas não obteve retorno.
Enquanto isso não acontece, Carlos continua com medo de mostrar o rosto, saindo às escondidas com o namorado e dando seu testemunho com nome fictício. Mas não por muito tempo. "Sinto que está chegando a hora de fazer uma escolha. Se der tudo certo, entre ele e a igreja, eu vou ficar com ele", diz, sem esconder a emoção.
* nome fictício
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