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Orgulho LGBT: Sem sair na rua, movimento reflete sobre memória e apagamento

Passeata organizada por grupos de atividades gay durante o Dia Internacional do Orgulho Gay na Avenida Paulista, em 1997 - LULUDI/ESTADÃO CONTEÚDO/AE
Passeata organizada por grupos de atividades gay durante o Dia Internacional do Orgulho Gay na Avenida Paulista, em 1997 Imagem: LULUDI/ESTADÃO CONTEÚDO/AE

Tiago Dias

Do TAB

28/06/2020 04h00

A pandemia do novo coronavírus cancelou comemorações e festas, e não foi diferente com a Parada do Orgulho LGBT de São Paulo. Pela primeira vez em 24 anos, uma das maiores paradas do mundo não coloriu a avenida Paulista com inúmeros trios, caixas de sons e milhões de pessoas — uma tradição da cidade desde quando a drag queen Kaká Di Polly se jogou na mesma avenida, em 1997, para fazer o bloco andar pela primeira vez.

Naquele 28 de junho, o movimento —que já se organizava em pequenas marchas e manifestações — decidiu abrir pela primeira vez o bandeirão do arco-íris, com um trio modesto e uma kombi, num dos principais cartões postais da cidade.

A autorização da prefeitura permitia a aglomeração em apenas uma via de uma das mãos da Paulista, mas, para a surpresa dos organizadores, 2 mil pessoas apareceram. O espaço limitado não era o bastante e a polícia cercou o grupo, impedindo que avançasse sobre o trânsito. Ao ver que ninguém ia sair do lugar, Kaká di Polly simulou um desmaio na frente dos carros.

"O trânsito parou, a polícia veio pensando que eu estava passando mal, aquela coisa toda. Avisei o Roberto de Jesus [um dos fundadores e coordenador do evento, entre 1999 e 2002] que eu ia fazer uma coisa ali e ele tinha que aproveitar para colocar o trio para andar", relembra hoje, aos 60. Quando o grupo já estava em marcha, Di Polly se levantou, agradeceu a ajuda, pegou na mão de uma amiga e disse: "Gata, agora corre", conta. "E fomos pra frente da marcha."

Marilyn Du Morro e Kaká di Polly relembram a primeira marcha na Parada de 2000 - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Marilyn Du Morro e Kaká di Polly relembram a 1a. Parada do Orgulho LGBT de São Paulo na edição de 2000
Imagem: Arquivo Pessoal

Ali, um grupo de drag queens e transexuais serviam de abre-alas para o primeiro desfile. Nas mãos, uma faixa com o tema: "Gays, lésbicas, travestis - Em todos os lugares, em todas as profissões". A visão daqueles corpos, em coloridos e exuberantes trajes, entre beijos e afetos, fez uma multidão se aglomerar nas calçadas e nas janelas dos prédios. Trechos da festa inaugural foram publicados pela drag queen Silvetty Montilla, 52, em seu Instagram esta semana.

"Não havia patrocinador, grandes trios. Era uma peruinha velha que colocaram na rua. A gente desceu a Consolação pela primeira vez com cartazes e muitas famílias se divertindo e militando. Foi uma coisa muito bonita", relembra.

Kaká, Silvetty e outros artistas e ativistas que ajudaram a dar a cara da Parada — e movimentar a comunidade em São Paulo antes de tudo isso começar — estarão na live que a drag Salete Campari prepara para este domingo, Dia do Orgulho LGBT, às 18h. Em comum, elas guardam histórias de um momento crucial para o movimento, mas compartilham também a ausência na Parada do Orgulho LGBT online, transmitido pelo YouTube no último dia 14 — formato que a Associação da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo (APOLGBT) encontrou para que a data, reservada para a 24ª edição, não passasse despercebida devido à pandemia.

Organizado pela produtora Dia Estúdio, o evento online contou com patrocínio do Bradesco e reuniu jovens criadores de conteúdo LGBTQI+, como a dupla Diva Depressão, a drag Lorelay Fox e Fernanda e Herbett do "Canal das Bee" — muitos deles fazem parte do time de criadores da própria produtora. Durante seis horas, esses youtubers e influencers debateram questões como democracia (tema da parada este ano), racismo e a luta de cada uma das letras da sigla, com humor e uma comunicação própria, voltada para uma geração mais nova.

Segundo o número parcial, divulgado pela APOGLBT-SP, a transmissão teve 10 milhões de acessos. O valor arrecadado ainda não foi somado, mas a ONG afirma que será destinado para a ação da Rede Parada Pela Solidariedade, que desde o começo da pandemia dá suporte a comunidade. A parada, no fim, não passou despercebida — nem a ausência de ativistas e artistas das gerações anteriores.

Silvetty fez uma live naquele mesmo dia para celebrar os 33 anos de carreira, mas acabou desabafando com seus seguidores. "Eu acho que faltou conscientização de saber como eram as coisas no passado, de saber quem abriu as portas", ela diz, ao TAB. "Recebi uma mensagem de um amigo que faz as paradas de Nova York e Los Angeles, e ele diz que lá é tradição o primeiro trio levar pessoas que carregam a história. A gente fica triste. Como seria bom se tivesse isso aqui."

Dizem que esse é o país sem memória, as pessoas precisam se lembrar de quem deu a cara a tapa

Parada do Orgulho Gay, em 1997 - LULUDI/ESTADÃO CONTEÚDO/AE - LULUDI/ESTADÃO CONTEÚDO/AE
1a. Parada do Orgulho Gay reuniu cerca de 2 mil pessoas, com o tema "Somos muitos, estamos em várias profissões”
Imagem: LULUDI/ESTADÃO CONTEÚDO/AE

Kaká Di Polly, que chegou a ser madrinha de honra da Parada em suas primeiras edições, dada à sua encenação em 1997, também recorreu às lives para criticar a ausência de histórias e personagens da luta.

"Todos [convidados da Parada Online], de certa forma, contribuem para a visibilidade da nossa militância. Eles fazem os programas — vamos chamar de programas, não sei o nome disso — e estão conseguindo coisas que no nosso tempo eram difícil, eles têm uma arma na mão que é maravilhosa, que é a internet, mas falta conhecimento. A história de ninguém de nós foi contada", ela diz.

Após a polêmica tomar as redes sociais, ela acusou a Associação da Parada de tê-la bloqueado no Twitter e afirma que suas lives têm sido derrubadas por denúncias anônimas. Parte dessa reação, ela reflete, está em seu voto em Jair Bolsonaro, na eleição presidencial — e faz questão de dizer que se arrepende. "Querendo ou não, ninguém vai mudar a história. Eu sou a história e ninguém vai me apagar", reage.

Renan Quinalha, professor de direito da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), observa que, em qualquer parte da história, a memória está sempre no plural. "Ela é conflitiva. Há sempre várias lembranças, várias memórias possíveis, várias fontes, vários atores e, nesse processo, há sempre apagamento e inviabilização", observa.

Priscila Quartier na primeira Parada, em 1997 - Reprodução - Reprodução
Priscila Quartier na 1a. Parada do Ogrulho LGBT de São Paulo, em 1997
Imagem: Reprodução

Avanços e silenciamentos

De 1997 pra cá, o mundo mudou muito. A causa LGBTQI+ ganhou mais visibilidade e foi cooptada por marcas e empresas, que passaram a adotar políticas de diversidade e estão interessadas no consumo do público engajado.

"Nos primeiros anos, a Parada era um ato político. Depois, tem uma virada de chave em que ela se torna um evento massivo, com mais de 300 mil pessoas, até bater a casa dos milhões", observa Renan Quinalha. "Isso faz com que a parada se torne um evento muito grande e vá para fora da comunidade LGBT. Ela se torna mais celebrativa, indefinível, menos como ato político no sentido tradicional, ainda que mantenha pautas políticas. Você não consegue mais definir a cara da parada, não tem mais isso."

O comportamento de muitos jovens LGBTQIs também evoluiu com a tecnologia. Hoje eles se articulam, debatem e saem do armário com auxílio das redes sociais. Das drags que estiveram à frente da Parada de 1997, poucas sabem utilizar ferramentas e plataformas de transmissão online, mas a importância delas é algo notável nas fotos — de cores já um tanto desbotadas.

"O novo é o que todo mundo está consumindo. Com todo mundo em casa, quem trabalha melhor agora são os youtubers. E ninguém quer patrocinar se você não tiver milhões de seguidores, vamos ser sinceros", observa Salete Campari, 51. "Por um lado, a parada acertou, porque ela precisa se bancar também. O novo é lindo e maravilhoso, mas é preciso lembrar de uma época que não se tinha internet, nem youtuber, mas tinha as trans, as travestis, as lésbicas e os gays brigando por direitos."

Quinalha dedica seu trabalho de pesquisa para registrar essas memórias. Co-autor do livro "História do Movimento LGBT no Brasil", ele observa que as novas gerações têm encampado com facilidade temas raciais e de identidade de gênero, questões que nem sempre estiveram à frente do movimento.

Primeira parada em São Paulo, em 1997. Apenas uma faixa da Paulista liberada - LULUDI/ESTADÃO CONTEÚDO/AE - LULUDI/ESTADÃO CONTEÚDO/AE
Lembranças da primeira Parada: Apenas uma faixa da avenida Paulista foi liberada em 1997
Imagem: LULUDI/ESTADÃO CONTEÚDO/AE

Reflexo disso está no resgate recente da trajetória de Marsha P. Johsnon e Sylvia Rivera, ativistas trans que foram importantíssimas nas manifestações após a Rebelião de Stonewall, em 1969, mas que durante anos estiveram apagadas no movimento. A dupla foi lembrada durante a Parada Online, assim como o escritor e ativista João Silvério Trevisan, que fundou em 1978 o "Somos", primeiro Grupo de Liberação Homossexual do Brasil, e Miss Biá — pioneira na arte drag, que morreu no início do mês, aos 80 anos, vítima de Covid-19. Nas redes sociais, no entanto, muitos apontaram que as menções ganharam pouco espaço na transmissão.

"Acho bastante ruim que isso tenha acontecido, que não se tenha dado o espaço devido para pessoas que fizeram tanto pelo movimento. Perdemos muito com isso", observa Quinalha. "Cada geração que chega, talvez por um ímpeto da juventude, acha que está inventando a roda, que é a mais revolucionária, que faz tudo melhor e diferente, mas a gente chegou até aqui porque muitos caminhos foram abertos antes, inclusive na época da ditadura."

Temos muito o que aprender com essa geração do passado, o seu modo de luta, de mobilização, em momentos mais duros como este, com um governo abertamente LGBTfóbico, que exalta a ditadura.

Para o professor, a falta de diálogo entre representações e gerações é mais um problema estrutural da existência LGBTQI+ na sociedade, onde a busca por aceitação, respeito, direito e representatividade atravessa todas as gerações.

Taline Marcel, Claudia Castelli, Silvetty Montilla e Natalina Bispo na primeira Parada de São Paulo, em 1997 - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Taline Marcel, Claudia Castelli, Silvetty Montilla e Natalina Bispo na primeira Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, em 1997
Imagem: Arquivo Pessoal

"Há um etarismo muito grande, um preconceito contra pessoas mais velhas na comunidade LGBT. Tem esse culto à juventude, à beleza, à virilidade, que são marcas da juventude, e acho que tudo isso acaba comprometendo o reconhecimento dos antecessores, das referências que historicamente lutaram pela comunidade", explica.

Para ele, é preciso equilíbrio nas representatividades e vozes dentro do movimento. "É possível buscar um meio termo que equilibre uma certa reverência ao passado com a criatividade, a inovação e a ruptura do presente em relação às gerações anteriores, que também precisa existir. Cada uma dessas coisas precisa ter o seu lugar reconhecido."

Ao TAB, a Associação diz que o evento online não substitui a Parada, que deve acontecer em 29 de novembro, e que Silvetty, Kaká e Salete foram convidadas para a transmissão. À reportagem, elas negaram ter recebido o convite e reforçam que a live deste domingo não é uma resposta à polêmica.

"É um encontro de amigas e lembranças num tempo como esse, tão louco", diz Salete Campari. "O presente é ótimo, o passado a gente conhece, mas o futuro a gente nunca sabe como vai ser. Tem que haver uma conjunção de sentimentos e valores. E a terceira idade tem que ser lembrada sempre."