Mulher colou 200 cacos da estátua de Aparecida após roubo frustrado em 1978
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Aos 82 anos, a restauradora Maria Helena Chartuni é uma das poucas pessoas autorizadas a tocar a estátua original de Nossa Senhora, na Basílica de Aparecida, em SP.
Responsável pela manutenção da santa, a profissional faz uma vistoria anual para deixá-la perfeita para o feriado de 12 de outubro. Mas nem sempre foi assim.
O necessário cuidado com a conservação da estátua e, claro, também com sua segurança, só se tornou algo imprescindível após o atentado que a imagem sofreu em 16 de maio de 1978.

Naquele dia, uma tempestade atingiu a cidade de Aparecida, no Vale do Paraíba paulista, deixando o lugar sem luz, interrompendo também a missa na basílica velha, onde a estátua de Nossa Senhora Aparecida era permanentemente exposta.
Um homem se aproveitou da confusão e da falta de segurança, e roubou a estátua. Na fuga, diante dos fiéis atônitos, deixou-a cair no chão, destruindo-a em mais de 200 pedaços.
À época, o reitor do Santuário, Padre Izidro de Oliveira Santos, procurou o museu do Vaticano para fazer o restauro, mas um dos responsáveis pelo museu, o brasileiro radicado em Roma Deoclecio Redig de Campos, preferiu delegar a missão ao Masp, comandado pelo professor Pietro Maria Bardi.

É justamente nesse momento que a vida de Maria Helena Chartuni se cruza com a da santa. Embora católica, ela guardava uma distância protocolar da religião, mas, como restauradora das obras do Masp, coube a ela a responsabilidade de recuperar a imagem.
"Tinha plena consciência que a restauração não seria fácil", diz Chartuni, que recebeu a reportagem do UOL em seu ateliê, onde relembrou como o trabalho foi feito.
Ao todo, Chartuni trabalhou por 33 dias ininterruptos unindo caco por caco para reconstruir a peça, epopeia que descreve em detalhes no livro "A História de Dois Restauros - Meu Encontro com Nossa Senhora Aparecida", lançado em 2016.
Mais de 300 anos de história
Objeto de devoção dos católicos e Padroeira do Brasil, a história da imagem de terracota de apenas 36 cm de altura remete ao século 18, quando em 1717 os pescadores Domingos Garcia, João Alves e Filipe Pedroso rezaram para a Virgem Maria pedindo por peixes no Rio Paraíba do Sul.
Logo depois, ao jogarem as redes no rio, eles "pescaram" a estátua, que estava sem cabeça. Alguns metros adiante, ao jogarem a rede novamente, encontraram a cabeça - e muitos peixes.
Na ocasião, a cabeça da santa foi colada com cera de abelha e, aos poucos, a imagem foi se transformando em objeto de adoração, inclusive com a construção de uma capela próximo ao local onde ela a estátua foi encontrada.
Embora a autoria da estátua de terracota não seja conhecida, seus traços sugerem que ela pode ter sido feita por algum discípulo de Frei Agostinho da Piedade (1610-1661).
Os anos passaram e novos milagres foram atribuídos à santa, até chegar ao ponto da Princesa Isabel, em 1888, em visita à basílica, oferecer um manto azul e uma coroa de ouro cravejada de diamante e rubis para adornar a imagem. A princesa atribuía o fato de ter tido três filhos saudáveis à intervenção da santa.
Quando a estátua foi quebrada em 1978, após 261 anos de sua descoberta no rio, Nossa Senhora Aparecida já havia sido declarada Padroeira do Brasil e sua importância para os católicos era indiscutível.
Para Chartuni, o restauro, embora encarado como seriedade, era apenas mais um trabalho. A artista, no entanto, conta que sua relação com a santa mudou assim que ela terminou o restauro e viu a multidão de devotos que acompanhou o caminhão do Corpo de Bombeiros que levou a imagem do Masp de volta a Aparecida. Desde então, ela se tornou também devota e, em sua casa, tem uma réplica idêntica da estátua.
A restauração da santa
Na ocasião da restauração, após colar os pedaços e não desperdiçar nem o pó, Chartuni se viu diante de um impasse: algumas peças estavam faltando, especialmente no rosto da santa. Em restauros de obras de arte, não se deve reconstituir os pedaços faltantes, mas, como os fiéis reagiriam ao olhar para a santa com o rosto desfigurado?

"Uma imagem sagrada, de culto, não poderia ser tratada apenas como obra de arte, pois chocaria os devotos. Em conjunto com os padres, decidimos reconstituir a estátua", diz ela.
Além disso, na restauração, Chartuni observou que a maneira como a terracota se partiu condizia com uma longa exposição à água, corroborando a história de que a imagem havia ficado submersa no rio.
Ao analisar a estátua, a restauradora notou ainda que ela não era originalmente negra e, sim, colorida. A coloração escura ocorreu após o contato com as águas barrentas do rio e também por longa exposição aos candeeiros dos locais onde ela ficou guardada ao longo dos anos.
A questão da cor da estátua, aliás, foi um dos motivos que levou Chartuni a assumir a manutenção anual da imagem.
Um ano após o restauro, em 1979, o reitor do santuário, o Padre Izidro de Oliveira Santos, o mesmo que sugeriu enviar a estátua para o Vaticano, numa desastrada atitude, pintou a imagem com tinta automotiva marrom.
As pessoas começaram a suspeitar que uma imagem falsa havia sido colocada no lugar. Chamada às pressas para consertar o erro, ela removeu a tinta e harmonizou novamente a pátina da estátua.
Mas, foi só em 1993, após uma visita a Aparecida, que ela passou a cuidar da imagem. Na ocasião, ela notou algumas manchas na estátua e, ao avaliá-la, percebeu que tentativas de fazer uma forma para reprodução de cópias danificaram a pátina.
Inconformada com o descuido, ela solicitou a autorização do novo reitor do Santuário para fazer a manutenção da santa, uma missão que cumpre diligentemente desde então - e de graça.
"Não me sinto especial por ter tido a oportunidade de restaurar a imagem de Nossa Senhora Aparecida, mas considero-me abençoada e agradecida por esta chance", diz Chartuni.
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