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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Como entender 'recado das ruas' se elas são pautadas pela desinformação?

Manifestantes a favor do presidente Jair Bolsonaro na praça Duque de Caxias, no centro do Rio de Janeiro - Eduardo Anizelli/Folhapress
Manifestantes a favor do presidente Jair Bolsonaro na praça Duque de Caxias, no centro do Rio de Janeiro Imagem: Eduardo Anizelli/Folhapress

Colunista do UOL

08/11/2022 04h01

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Ok, nós entendemos.

As manifestações golpistas que trancaram estradas e seguiram para a frente dos quartéis para pedir golpe militar são mais diversas do que supõe nosso modo binário de entender o mundo.

Não são compostas só por pessoas brancas, ricas, herdeiras dos senhores de escravizados ou bisnetos de nazistas radicados no Brasil.

São numerosas, têm base popular inegável e não podem ser resumidas a um surto pós-eleitoral que derreteu a capacidade de pensar e agir racionalmente.

Aqui e ali já se discute se são manifestações espontâneas ou induzidas. Afinal, embora claramente alguém esteja pagando pelas horas paradas e pelos materiais de campanha, ninguém ali foi coagido. A maioria está lá porque acredita na missão.

Só que nada disso minimiza o fato de que essa "casa" está sendo insuflada por uma bomba de desinformação.

A turma que tomou as ruas pode estar mais ou menos exaltada, mais ou menos disposta a pegar carona num caminhão da história e seguir viagem de costas atracado no para-brisa, mais ou menos capaz de marchar com um guarda-chuva no ombro ou cantar o hino nacional para um pneu.

Mas todos ali estão igualmente mobilizados por uma fraude: a ideia de que as eleições foram "roubadas", que gente como Alexandre de Moraes entrou em campo para validar o gol de mão do PT e censurar quem for às redes comunicar a verdade. A única "verdade" que eles acreditam.

Alguém precisa avisar a turma que a conversa de que, com Lula (PT) eleito, o Brasil teria aberto as portas para o comunismo e a ditadura do proletariado, para a perseguição a cristãos e a extinção das dinâmicas heteronormativas nas casas das melhores famílias é a maior fraude dessa eleição. Mas foi tão alardeada na campanha, e difundida por influencers, pastores e líderes políticos bem remunerados, que se tornou inglória a missão de explicar que está tudo bem, vai ficar tudo bem, todo mundo pode dormir tranquilo porque o quarto das crianças não será ocupado amanhã por nenhum camarada venezuelano.

Conheço gente, e gente adulta, que realmente acredita na conversa de que tudo o que temos será agora dividido em dois, inclusive nossas casas e nossa frota composta por uma moto e uma bicicleta.

No limite, até a forma como atribuem a Jair Bolsonaro (PL), o candidato derrotado, o papel de salvador e símbolo da família tradicional é uma fraude. É só ter um pouco de interesse para saber como o chefe de família se comportou desde o primeiro casamento (o atual é o terceiro). Dar a caneta moralizante do país a alguém que permitiu aos familiares comprarem 51 imóveis com dinheiro vivo é outro erro factual de quem, por razões justas ou não, pensa estar na rua lutando por um país melhor.

Essas pessoas estão comprando gato por lebre e, pior, não sabem disso.

Essa bolha de gente desinformada cresceu e se multiplicou, mas ninguém sabe ao certo como furá-la.

De vez em quando, essas bolhas que não dialogam nas redes se entrechocam em territórios neutros como um simples passeio com os animais ou um encontro de pais na escola.

Faça o teste e tente: não tem conversa com dois ou mais adultos sobre qualquer amenidade que não enverede pela política em cinco minutos.

No último fim de semana, um interlocutor conseguiu colocar a palavra "Lula" num comentário sobre a queda brusca da temperatura em nossa cidade. "O frio está que nem o Lula: você acha que acabou, mas deu um jeito de voltar e agora não quer ir embora."

Pronto: no minuto seguinte, eu já havia me transformado num potencial fiel da Palavra da Fraude nas Urnas. E dá-lhe falsos argumentos alimentados pelo picareta argentino que teria provado por A mais B que a urna de 2020 não passou por auditoria, que evitaram o voto impresso por essa razão, que o mesmo roubo aconteceu nos EUA e que era hora de agir etc.

Nessas horas a vontade é sair do personagem à paisana e fazer como os médicos quando alguém passa mal no rolê em seu dia de folga: "Calma, tente não se mexer, eu li o jornal hoje, eu conheço os livros de História e posso te ajudar".

Mas, por alguma razão, minha reação nesses momentos é travar. Talvez porque, na propaganda oficial, essas pessoas foram ensinadas a desconfiar e ter raiva de quem tem o jornalismo como profissão — como se fôssemos pagos para esconder do cidadão comum "a verdade" que só o bolsonarismo detém.

Talvez também porque o mundo de fato está polarizado. Numa ponta está gente armada, na outra, gente morta.

A sensação de impotência é brutal.

Fico imaginando como um dentista faria se uma multidão formada em odontologia pelo WhatsApp espalhasse por aí uma corrente dizendo que chupar bala é mais efetivo para prevenção da cárie do que escovar os dentes. E que os dentistas não querem que você saiba disso porque lucram vendendo fio dental.

Trabalhar com informação e ouvir groselhas sobre fraude eleitoral e perigo comunista de quem já não lê, não quer ler e tem raiva de quem lê notícias sérias é ver parte de uma vida dedicada à curiosidade e ao exercício de apuração ser arremessada ao lixo.

Entender o que move tanta gente a ir às ruas e de forma tão apaixonada é urgente. Mas não nos exime de dizer que elas estão sendo enganadas e instrumentalizadas. Só não tenho ideia de como começar essa conversa.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL