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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Eleições tiraram do armário o neonazista que habitava perto de todos nós

Em 2021, operação contra grupos neonazistas e fascistas cumpriu 34 mandados em sete estados - Reprodução/ Twitter Polícia Civil SC
Em 2021, operação contra grupos neonazistas e fascistas cumpriu 34 mandados em sete estados Imagem: Reprodução/ Twitter Polícia Civil SC

Colunista do UOL

10/11/2022 04h01

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Faz alguns anos que estudiosos da extrema direita pelo mundo apontam o crescimento de células de inspiração neonazista no país.

Levantamentos como os produzidos pela antropóloga da Unicamp Adriana Dias mostraram como a chamada deep web se tornou um território propício a todo tipo de discurso de ódio. Nesses canais cresciam (e não apareciam) fãs de Adolf Hitler, supremacistas brancos, grupos xenófobos, racistas, negacionistas do Holocausto, entre tantos.

Há cerca de um ano a especialista alertou para um boom de downloads de materiais neonazistas propagados livremente por canais como o Telegram.

A estimativa é que 900 mil pessoas tiveram acesso a propagandas do tipo somente em 2021. A assimilação acrítica de discursos de inspiração nazifascista, que no século 20 levaram à morte milhões de judeus e outras minorias, corre à solta sem qualquer filtro de conhecimento histórico — uma falha identificada já na formação educacional sobre a qual as escolas não parecem ainda atentar.

Mobilizações do tipo não nascem por geração espontânea ou vontade juvenil de aparecer ou chocar. São regadas por anos e criam raízes profundas em países que serviram de abrigo a pessoas como Josef Mengele, médico nazista acusado de usar seres humanos como cobaias em experimentos cruéis e de enviar milhares de prisioneiros para a morte em campos de concentração. Mengele encontrou no Brasil um paraíso. Viveu tranquilo e impune até sofrer um mal súbito e morrer em uma praia idílica de Bertioga, no fim dos anos 1970.

Esse terreno criminoso afagado na impunidade sedimentou as camadas da deep web e agora explodem como uma fossa.

As eleições de 2022 tiraram a turma das coxilhas e mostrou que era ilusório imaginar que o fã de Adolf Hitler em 2022 se resumia a um incel esquisito que não socializava e tinha o discurso limitado às quatro paredes da célula extremista onde foi acolhido.

A sombra da experiência nazista não mais assusta. Pelo contrário, inspira uma multidão disposta novamente a eleger um grupo social como inimigo a ser exterminado para a purificação nacional.

Esse grupo social tem muitos nomes. Nordestinos, esquerdistas, feministas, petistas.

Para parte dos eleitores, todas essas definições englobam traidores de uma ideia de nação que precisam ser punidos por terem se desviado de uma ordem de comando. Uma ordem agora marcha na frente de quartéis e se denominam o Brasil legítimo. O Brasil mais puro.

Nada disso é inofensivo.

Em um município do Rio Grande do Sul, bolsonaristas organizaram boicotes contra lojas identificadas como "petistas". A ideia é expor os inimigos internos com a estrela do PT colada em frente aos estabelecimentos.

A proposta tem paralelos macabros com as ideias de Reinhard Heydrich, então chefe do Departamento Central de Segurança do Reich, que queria tornar visíveis para todo mundo os chamados "inimigos internos da Alemanha".

Esse ódio decantou por tanto que tempo até que, em novembro de 1938, há exatos 84 anos, uma data relembrada como a Noite dos Cristais, alemães "puros" saíram às ruas para depredar e incendiar sinagogas e lojas de propriedades de pessoas tratadas como "o mal" durante anos — no caso, os judeus. Heydrich defendia que os alvos fossem identificados com um distintivo para facilitar o trabalho dos perseguidores. O resto é história.

Me pergunto se em algum momento os horrores desse período histórico e os paralelos com a realidade atual foram abordados em sala de aula nos colégios de elite como o Visconde de Porto Seguro, em Valinhos (SP), onde alunos inconformados com o resultado das urnas acharam que era uma boa ideia evocar a lembrança de Hitler para ameaçar fazer com petistas o que o líder nazista fez com os judeus na Alemanha.

Em uma ponta e outra, o nacionalismo exacerbado, baseado na ideia de um país cercado e a perigo, se tornou o colchão para acomodar toda a violência — as vítimas, afinal, não se encaixavam em uma ideia de um país acima de tudo e poderiam ser descartadas como ratos, como já eram retratadas em metáfora propagada pelo regime.

Atualizados para o novo século, os memes de conteúdo ofensivo não ficaram apenas nas camadas da deep web, mas na superfície de grupos de WhatsApp nos quais o inimigo definido poderia ler as mensagens como ameaça. O episódio levou à expulsão dos alunos.

Valinhos, como alguns já sabem, é a cidade onde decidi morar e cuidar da família, longe dos ruídos e das sirenes da cidade grande.

Mas desde o episódio não consigo andar por campos e praças daqui sem me imaginar num cenário misturado entre "Dogville", de Lars von Trier, e "A Fita Branca".

No filme de Michael Haneke, que se passa às vésperas da Primeira Guerra, não assustam apenas os episódios macabros promovidos pelos adolescentes de uma vila alemã sob as ordens de um médico, um barão e um pastor violentos, mas sim saber que aquela geração estava tomando corpo e estatura para mobilizar os eventos que levaram à Segunda Guerra.

Como disse em entrevista ao jornal O Globo o presidente da Confederação Israelita do Brasil, Claudio Lottenberg, crianças costumam reproduzir o que assistem nas ruas, muitas vezes inspiradas no comportamento dos pais, e isso ecoa no ambiente escolar, onde não é tão madura a percepção do quanto é sério o discurso de ódio.

Para ele, o Holocausto é o maior exemplo da história do perigo que representa a intolerância e episódios como os da escola em Valinhos devem servir como referência no processo educativo para acentuar valores de respeito ao próximo e de aceitação à diversidade. Difícil é fazer isso enquanto líderes políticos irresponsáveis dizem que o Brasil foi "roubado" e que é preciso ocupar as ruas, anular o pleito e viver sob intervenção militar.

Lottenberg é cirúrgico ao dizer que a globalização não diminuiu a desigualdade no mundo e que isso fortaleceu a defesa de culturas nacionalistas, que "muitas vezes criam uma visão exagerada de proteção, muitas vezes discriminatória". É quando "o outro" passa a ser uma ameaça e os inimigos internos são identificados e se tornam alvo de boicote e também de agressões.

"Nesse ambiente, é bastante fértil a propagação de ideias como o nazismo", afirma.

Desnazificar o Brasil é uma prioridade — e não "apenas" uma força de linguagem nem um teste à lei de Mike Godwin, advogado segundo quem, à medida que uma discussão online se alonga, a probabilidade de surgir uma comparação envolvendo Adolf Hitler ou os nazistas tende a 100%.

No Brasil de 2022, quando alguém defende que divergentes sejam facilmente identificáveis com estrelas em suas lojas e os filhos da elite pregam extermínio de nordestinos, a comparação deixa de ser um recurso retórico e se torna um alerta real.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL