Topo

Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A Copa dos pais presentes: um jogo que atletas da seleção começam a virar

20.11.2022 | Lucas Paquetá com um dos seus filhos durante o treino da seleção brasileira na Copa do Qatar - Rodolfo Buhrer/Fotoarena
20.11.2022 | Lucas Paquetá com um dos seus filhos durante o treino da seleção brasileira na Copa do Qatar Imagem: Rodolfo Buhrer/Fotoarena

Colunista do UOL

01/12/2022 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Um levantamento do repórter Breiller Pires publicado no site do jornal El País, em 2018, mostrou que seis dos 11 titulares da seleção brasileira que disputou a Copa do Mundo daquele ano na Rússia cresceram longe dos pais biológicos.

Quatro anos se passaram e, se alguém fizer um novo levantamento com o time atual, descobriria que o índice não deve ter se alterado. O que mudou é que muitos desses atletas se tornaram pais de lá pra cá (20 dos 26 convocados têm filhos pequenos e a maioria pode levar as crianças ao Qatar).

Um deles foi Gabriel Jesus. O atacante do Arsenal costuma comemorar seus gols homenageando a mãe, que o criou praticamente sozinha. Hoje ele é pai de uma criança de poucos meses.

Alguns dos melhores momentos desta Copa não foram produzidos pelos atletas durante as partidas.

Autor do gol da vitória do Brasil contra a Suíça, na segunda-feira (28), Casemiro, que foi abandonado pelo pai na infância e praticamente "adotado" por um olheiro, hoje vê os filhos vibrarem por ele na arquibancada. Um vídeo com a reação das crianças ao ver o volante brilhar em campo foi postado pela companheira do atleta.

"Toda a criação dele, a da nossa família, foi baseada em mulheres trabalhadoras, que cuidavam dos seus filhos, trabalhavam fora", contou uma prima do volante, em entrevista ao Jornal Hoje.

Antes da estreia da equipe, o meia Paquetá virou notícia ao deixar a bola de lado e socorrer com um abraço o filho que chorava ao vê-lo à distância, no gramado.

Tirando um mané ou outro, que viram no episódio uma suposta falta de profissionalismo, não teve, como não deveria ter, polêmica alguma ali. (Minha amiga Luiza Sahd falou tudo sobre o episódio aqui no TAB.)

Quem acompanha o atleta nas redes sociais provavelmente já assistiu a alguma atuação do meia, conhecido pela polivalência em campo, no papel de pai — como quando se vestiu de Homem-Aranha, pulou o muro de casa e "invadiu" a festa do filho, fã do herói da Marvel.

Também ganharam visibilidade as cenas dos filhos dos jogadores entrando em campo após o treino para bater bola com os pais.

O contato é parte da preparação montada pela comissão técnica para manter os convocados perto das famílias e suavizar o ambiente de tensão — agravado, muitas vezes, pela distância das pessoas mais importantes de suas vidas. (O volante da Argentina que passou uma noite em branco compensando a distância curtindo fotos da namorada no Instagram que o diga.)

Quem precisou viajar a trabalho por alguns dias sabe como essa distância é dolorosa e que um mês é, sim, muita coisa.

Durante minha infância e adolescência, cresci ouvindo histórias dos jogadores bad boys que pulavam o muro da concentração para farrear com os amigos de madrugada. Histórias assim faziam deles uma espécie de heróis; era como se a capacidade de driblar as figuras de autoridade que os tratavam como crianças fosse um talento recomendado para aplicar firulas também durante os jogos.

Não me lembro de ver os craques dos anos 1990 em revistas de celebridades com os filhos. Lembro apenas das reportagens sobre as mulheres que colecionavam como carros e outros objetos de ostentação. (Uma exceção, até hoje lembrada, é a homenagem de Bebeto ao filho recém-nascido, que ele simulou carregar no colo ao comemorar seu gol contra a Holanda na Copa de 1994).

É verdade que, entre os comandados de Tite, estão atletas que passaram longe da peneira de bons pais. Militão, por exemplo, preferiu curtir as férias com os amigos enquanto sua (agora ex) companheira, grávida, ficou em casa. E Rodrygo se negou a fazer um teste de DNA de seus filhos gêmeos, com quem ele mal tem contato. Baita ironia para quem tem um pai presente e cuidando de sua carreira o tempo todo.

Nos novos tempos, haverá cada vez menos panos a passar a pais como Militão e Rodrygo, em contraste com a admiração dos colegas de equipe que, sim, parecem fazer nada mais do que o básico além das quatro linhas — mas já é um avanço.

(No documentário da Netflix sobre o Neymar, um dos momentos mais interessantes é quando o filho do craque pede para descer para o play e jogar bola com ele. Neymar, como muitos pais ao fim de um dia de trabalho, parece cansado. Mesmo assim ele desce. E de repente estão lá as crianças do condomínio batendo bola com o camisa 10 da seleção brasileira.)

Tempos atrás, passei a integrar literalmente o time dos pais do clube de nossa cidade. Ali o critério para fazer parte da equipe não era técnico: os atletas deveriam ter filhos (ou filhas) matriculados nas aulas de futebol.

Um dos organizadores me disse que a ideia era poder jogar bola, de preferência junto com os filhos sempre que possível, e reunir a família para um convescote ao fim do jogo. "Não queremos ser aqueles caras que saem sábado de manhã para jogar futebol, deixam as crianças com as mulheres em casa e voltam bêbados no fim do dia. Queremos que todo mundo se divirta junto", ele disse.

Tem sido uma experiência e tanto.

Até pouco tempo, era comum ouvir de amigos de longa data piadas ou comentários de deboche sobre quem trocava os embalos de sábado à noite (ou grandes projetos profissionais que envolviam viagens e tempo quase integral de dedicação) por uma maratona de Galinha Pintadinha. "Como assim você vai deixar de ter uma vida agora?"

Falas assim são cada vez menos aceitas, o que se revela na presença de figuras masculinas (de novo, fazendo o básico do básico) nos passeios pelo parque num domingo de manhã, o que antes era delegado apenas às mulheres.

São raras as ocasiões em que um artista (no caso, da bola, com o perdão do clichê) tem tanta visibilidade quanto numa Copa do Mundo. Dar o exemplo é também o mínimo, mas pode mudar o mundo.

Num ambiente ainda tão hostil quanto o futebol, não deixa de ser admirável quem não tem vergonha de mostrar em casa ou à beira do campo a imagem de pai afetuoso que muitos desses atletas não tiveram na infância.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL