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Luiza Sahd

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Afinal, a quem o filho do jogador Paquetá atrapalhou nessa Copa do Mundo?

20.11.2022 | Lucas Paquetá com um dos seus filhos durante o treino da seleção brasileira na Copa do Qatar - Rodolfo Buhrer/Fotoarena
20.11.2022 | Lucas Paquetá com um dos seus filhos durante o treino da seleção brasileira na Copa do Qatar Imagem: Rodolfo Buhrer/Fotoarena

Colunista do UOL

22/11/2022 08h09

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A Copa do Mundo do Qatar tem sido marcada por notícias de desumanização — dos trabalhadores em condições precárias nas obras do evento à censura contra manifestações por direitos humanos, passando pela proibição de "gestos públicos de afeto". O torneio mal começou e dá a sensação de que a gente vai querer esquecê-lo o mais rápido possível.

Eis que justamente um gesto público de afeto de Lucas Paquetá, da seleção brasileira, causou incômodo a um comentarista esportivo brasileiro — não ao povo qatari.

Instantes antes do início do treino da Seleção neste domingo (20), Paquetá subiu as escadas para atender o filho, que estava chorando na arquibancada. A imagem foi, provavelmente, a coisa mais bonita que testemunhamos nesta Copa, toda errada até aqui. Mas o comentarista esportivo João Paulo Cappellanes, da Rádio Bandeirantes, não gostou do que viu.

Classificando a atitude de Paquetá como pouco profissional, Capellanes foi duro em suas palavras. "Cara, não quero ser chato, mas será que os jogadores não conseguem ficar 30 dias totalmente focados e longe da família?! 30 dias não vai [sic] tirar pedaço de ninguém, né?! Porra?", disse no Twitter.

O jornalista ainda gravou uma série de vídeos contextualizando sua opinião, argumentando que já acompanhou muita picuinha entre familiares e assessores de atletas na Copa de 2018. Ele reafirmou que atitudes como a de Paquetá poderiam atrapalhar o foco dos atletas durante a competição.

[[[ PARTE 1 ]]]

Polêmica sobre o post do Paquetá! pic.twitter.com/UN39BHIFW2

-- João Paulo Cappellanes (@capelareal) November 21, 2022

Questionado se tem filhos, Cappellanes ainda respondeu: "Sim! Um cachorro que é como um filho pra mim". Um espetáculo de equívocos ao vivaço na rede social do passarinho — que (ainda) é de graça.

Filho atrapalha quem?

Desde que o mundo é mundo, filho atrapalha mesmo. Não existe criança que não demande atenção integral nos primeiros anos de vida — não por acaso, a gente escuta em cada esquina que "é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança". E é tudo verdade.

A grande questão é, aos olhos da sociedade, quem a criança pode atrapalhar. Se estivéssemos falando de uma atleta que acolhe o filho chorando antes do treino, esse assunto provavelmente nem existiria.

O jogador não fez mais do que o mínimo que um pai pode e deve fazer quando o filho pede atenção, mas somos acostumados a esperar pouco ou nada deles no país em que 500 crianças são registradas, diariamente, sem o nome do pai na certidão de nascimento.

A polêmica em torno do ato de Paquetá pode parecer vazia por ter sido tão mal apurada por Cappellanes — o treino sequer tinha começado quando o menino chorou — ou por partir de alguém que, felizmente, não tem poder de decisão sobre a interação entre atletas e suas famílias no torneio. Acontece que o incidente envolve uma questão de direitos humanos tanto quanto aquelas que já pipocam nos jornais, porque a desconstrução do machismo também o é.

Durante o período de isolamento social, quem teve o privilégio de trabalhar remotamente acabou testemunhando, em algum momento, a dureza da vida de quem cuida de outras pessoas. Foram muitos momentos de crianças invadindo reuniões online, gritando intimidades inapropriadas com microfone aberto, chorando ou pedindo colo, como aconteceu com o filho de Paquetá.

Cuidar de alguém é o ato mais lindo que existe, mas não há como se blindar de aborrecimentos esporádicos, a menos que toda responsabilidade por um filho seja delegado à mãe, como acontece mais do que deveria no Brasil.

Um atleta em uma competição que acontece a cada quatro anos — e que pode, sim, revolucionar sua carreira — também pode ser interrompido por um filho. Mães passam por isso todos os dias e, delas, se diz que ficam melhores, se tornam "profissionais multitarefas". Quantas acabam se prejudicando no trabalho para levar uma criança ao médico? Quantas são excluídas de processos seletivos por serem mães sem uma grande rede de apoio? O que as torna menos importantes que um jogador de futebol da Seleção?

Particularmente, sonho com um mundo em que homens também precisem ser um pouco mais multitarefa para que mulheres possam ser um pouco menos cansadas e sobrecarregadas. Que mais homens imitassem essa pequena, bonita e decente atitude do Paquetá já seria um bom começo.

Já as análises como a de Cappellanes, que são agressões machistas disfarçadas de opinião, essas sim deveriam ser censuradas, punidas ou minimamente desencorajadas. A presença do filho de Paquetá no treino só atrapalhou, efetivamente, a paz dos espectadores sexistas. Para todo o resto das pessoas, foi um sopro de ternura no deserto de transcendência que a Copa do Qatar está projetando.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL