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Luiza Sahd

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Torturar, matar e fazer Stories dentro de viatura: tudo normal no Brasil

O motorista de aplicativo, Christopher Rodrigues, que atropelou e matou o jovem Matheus Campos da Silva, 21, em São Paulo - Reprodução
O motorista de aplicativo, Christopher Rodrigues, que atropelou e matou o jovem Matheus Campos da Silva, 21, em São Paulo Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

06/05/2023 04h00

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O caso do motorista de aplicativo que matou um suspeito de furto de celular e transmitiu o crime pela internet vem fazendo algum barulho — mas não o suficiente para que o caso seja conduzido com a seriedade que demanda.

Além de ter sido tratado com pompa e circunstância pelos policiais que foram chamados ao local do incidente, Christopher Rodrigues, 27, deve saber que sua iniciativa "justiceira" não é tão isolada ou malvista: na internet, ele também recebeu inúmeros afagos pelo gesto de matar uma pessoa que não estava colocando nenhuma vida em risco.

Essa história só parece atípica pelo detalhe de ser compartilhada nas redes sociais enquanto a vítima morria. Mas ela está debaixo dos nossos narizes, bem na tela do celular, todos os dias.

Em novembro de 2022, fiz um trajeto de uns 30 minutos com um carro de aplicativo. Estava batendo um papo pra lá de ameno com o motorista quando ele pisou no acelerador e jogou o carro de forma brusca na direção do garoto de uns nove anos de idade que cruzava a pista perigosamente.

Enquanto recuperava o fôlego, ouvi o motorista mudar o rumo da conversa: "Tá vendo esses meninos aí? Tudo ladrão. Se entrar na minha frente, passo por cima sem dó". Fiquei tão assustada que só consegui balbuciar: "É uma criança" — e ouvi mais uma lista de atrocidades até chegar a uma rua onde pude desembarcar.

Ter o celular roubado ali teria sido infinitamente mais tranquilo do que permanecer no carro de um estranho com discurso violento. Sei disso porque já tive dois celulares roubados à mão armada e alguns incidentes envolvendo motoristas de aplicativo descompensados. Entregar o celular e resolver o problema é bastante menos traumático.

Quando assisti aos vídeos gravados por Rodrigues caçoando do homem que matou, me perguntei quantas histórias semelhantes já devem ter acontecido silenciosamente por aí, longe das redes sociais e do debate público.

O discurso de extermínio a delinquentes por civis é popular, combina com o ideal de país do bolsonarismo e não traz nenhuma novidade: a quantidade de gente que tem mais apreço pelo conceito de propriedade privada do que pelo conceito de humanidade é sempre impressionante, apesar de chocar pouca gente.

As provas materiais do homicídio doloso foram produzidas e divulgadas pelo próprio motorista e, apesar disso, as autoridades competentes seguem investigando se Rodrigues teria atropelado e negado socorro a Matheus Campos Silva, 21, "acidentalmente".

Sim, o homem que filmou e debochou da vítima ensanguentada embaixo do carro, suplicando por socorro enquanto agonizava. O que comemorou o óbito de Matheus dentro da viatura, publicando Stories no Instagram. O mesmo que alegou ter sido tranquilizado pelo delegado, porque não seria preso.

O único fato novo sob o sol do Brasil é a tranquilidade com que o poder público tem conduzido a situação: da Secretaria de Segurança Pública ao governador do estado de São Paulo, ninguém está fazendo muita questão de explicar por que tantas provas de dolo são insuficientes, não. Uma nota de imprensa bem protocolar, afirmando que o caso está sendo investigado, foi divulgada e — vida que segue. Só algumas vidas, claro.

A inércia da Justiça diante de um assassinato transmitido pela internet e pela televisão — por onde a mãe de Matheus assistiu à morte do filho — só reforça o que todo mundo já desconfia, mas evita verbalizar: estamos completamente desumanizados. E como bons desumanizados, mal conseguimos mobilizar perplexidade suficiente para protestar por alguma reparação.

O roubo do celular, a reação do motorista, a transmissão da morte em tempo real, as reações na internet, nossa conivência com as condições laborais precárias dos trabalhadores de aplicativos, a conduta da polícia e dos órgãos responsáveis por essa gente toda mostram, em muitas camadas, o que acontece com uma sociedade estruturalmente desigual.

Gente exausta e sem esperança — do trabalho como ambulante no caso de Matheus, ou de fazer Uber, como Rodrigues — se matando nas ruas, literalmente, por causa de um aparelho avaliado em R$ 800.

Se a vida de alguém vale menos do que um salário mínimo para tantas pessoas, é porque a vida de quem aplaude assassino de ladrão também anda valendo muito pouco nesse país. Ninguém ganha nada quando um Matheus morre, mas todos perdemos muito quando um Rodrigues mata.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL