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Luiza Sahd

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

É tranquilo ser uma Xuxa se tudo for responsabilidade de uma Marlene Mattos

Xuxa e Marlene Mattos em cena do documentário exibido pela Globoplay - Reprodução/Globoplay
Xuxa e Marlene Mattos em cena do documentário exibido pela Globoplay Imagem: Reprodução/Globoplay

Colunista do UOL

06/08/2023 04h00

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Depois de grande expectativa do público e muita especulação nas redes sociais, chegou o episódio de "Xuxa, o Documentário" em que a Rainha dos Baixinhos confronta sua ex-empresária, Marlene Mattos, pela forma abusiva com que ela teria conduzido a vida profissional e pessoal da apresentadora.

Entre a divulgação do teaser e o embate completo exibido pelo Globoplay, vimos muita comoção em favor da loira. Não é para menos: Marlene foi autora confessa de falas como "você deveria morrer cedo pra virar um ícone". Foi também a empresária que forçou um encontro "surpresa" entre Xuxa e o pai — com quem ela havia rompido havia 7 anos — e que repetia, reiteradamente, comentários depreciativos sobre a aparência dela, entre outras barbaridades. A gota d'água teria sido uma fala capacitista de Marlene para endossar que odiava trabalhar com crianças. O irônico é que sempre se disse isso de Xuxa.

Por outro lado (e não que existam só dois lados no conflito entre uma carismática sósia da Barbie e sua empresária negra, nordestina e lésbica desfem nos idos de 1990), sobra impotência de Xuxa e falta contexto sobre seus algozes no documentário.

Em primeiro lugar, é pouco provável que qualquer mulher como Xuxa teria passado por menos apuros há 40 anos — especialmente se seu empresário tivesse sido um homem. Quando Marlene diz que eles a teriam tratado como um pedaço de carne e dispensado a loira, infelizmente não estava mentindo. E, ao que tudo indica, Marlene mentiu pouco para Xuxa nos 19 anos em que atuaram juntas.

Condenar as falas e atitudes abusivas de Marlene faz parte do pacto civilizatório, mas engolir sem questionar a narrativa de que Xuxa passou duas décadas cheia de dinheiro e em completa impotência é boa vontade demais para com a Rainha dos Baixinhos.

Quando se chega ao patamar de fama, riqueza e poder que Xuxa descreve em seu documentário, fica complicado colocar toda a responsabilidade por não recrutar paquitas negras nas costas de Marlene Mattos — ou culpá-la inteiramente pela pressão estética exercida sobre as meninas, como se Xuxa não fosse conivente com tudo isso.

Marlene jogou bem demais o jogo dos homens em um tempo em que não existia nenhuma atração na TV brasileira com tanto protagonismo feminino, pro bem e pro mal. Xuxa fez o que parecia seguro: topou esse jogo com tudo o que ele incluía. O preço de discordar de Marlene poderia ser o ostracismo, e ela não pagou pra ver.

Nesse caso, não dá para brotar 20 anos mais tarde dizendo que sempre esteve "do lado certo da História".

A omissão de Xuxa se repete, lamentavelmente, em outros episódios marcantes da série. O relacionamento com Ayrton Senna não deu certo? Culpa da Marlene. O piloto namorava e Xuxa queria reatar? Bora ignorar solenemente esse fato. O garoto que contracenou com ela em "Amor Estranho Amor" ficou desempregado porque o filme arranhava a imagem de Xuxa? Caramba, que pena.

Taí uma coisa que serve para uma Xuxa e para qualquer outra pessoa no mundo: quem se isenta de tomar decisões não pode ser culpado por nada, no fim das contas. É um lugar quentinho e gostoso, sim, mas é desleal apontar o dedo, depois, para quem assumiu esses riscos todos por duas décadas.

É impossível (e bem triste, na verdade) contar qualquer história de vida com certa justiça sem mostrar a complexidade das pessoas que fizeram parte dessa caminhada. Isso serve para Marlene e suas circunstâncias, mas também para pessoas que só fizeram o bem a Xuxa — como Maria, a empregada doméstica apresentada como "sua segunda mãe". Dela, só sabemos que passou 30 anos trabalhando para Xuxa e que morreu enormemente agradecida a ela.

O documentário não chegou ao fim, mas dá desânimo de conferir o resto. Agora é torcer para que Xuxa vista um cropped, reaja, assuma as rédeas da própria história, reconheça que já fez e falou coisas equivocadas — mas que todos nós podemos mudar de ideia —, essas coisas.

As chances parecem ser mínimas, porque desta vez não há uma Marlene Mattos para assumir a responsabilidade por qualquer deslize dessa pessoa que nunca errou e, se errou, não reparou. Mesmo depois de 40 anos.