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Luiza Sahd

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Nikolas ataca pessoas trans, mas o perigo mora no banheiro masculino

Nikolas Ferreira faz discurso transfóbico na Câmara dos Deputados no Dia Internacional da Mulher - TV Câmara
Nikolas Ferreira faz discurso transfóbico na Câmara dos Deputados no Dia Internacional da Mulher Imagem: TV Câmara

Colunista do UOL

10/03/2023 09h11

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Na quarta-feira (8), o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) vestiu uma peruca loura, se apresentou como "Deputada Nicole" e deu início a um discurso na Câmara dos Deputados que, segundo ele, visava defender os interesses femininos no Dia Internacional da Mulher. O resultado, além da evidente transfobia e da misoginia, foi uma avalanche de desinformação a respeito de abusos sexuais e pedofilia.

O deputado começou o discurso afirmando que as mulheres estariam "perdendo espaço" para "homens que se sentem mulheres" e, ato contínuo, insinuou que mulheres trans poderiam representar ameaça para crianças em banheiros públicos.

"E não estou defendo só a minha liberdade, mas a liberdade de um pai recusar de [sic] um homem de 2 metros de altura, um marmanjo, entrar no mesmo banheiro que a sua filha sem você ser considerado um transfóbico", disse Nikolas. Com isso, ele atesta que desconhece completamente as circunstâncias que envolvem os crimes de abuso sexual e pedofilia: o verdadeiro inimigo usa o banheiro masculino.

Além da inexistência de estatísticas envolvendo ataques cometidos por mulheres trans em banheiros públicos, no Dia Internacional da Mulher (e em todos os outros), seria importante divulgar de que forma ocorre o abuso infantil e o estupro no nosso país.

De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a grande maioria das vítimas de violência sexual são meninas menores de 13 anos. Em 2021, elas representavam 61,3% das agredidas nos casos notificados. E, na esmagadora maioria dos incidentes, a violência acontece dentro de casa (76,5% das vezes), não em banheiros públicos.

O deputado pode pensar — ou fingir pensar — que os estupradores estão pelas ruas procurando presas desconhecidas em banheiros femininos, mas eles estão no seio da família brasileira. O mesmo relatório de 2021 mostrou que pais e padrastos são os agressores em 40,8% dos casos de abuso infantil no país. Irmãos, primos e outros familiares são os abusadores em 37,2% das violações, e o avô é o culpado em 8,7% das denúncias.

Toda essa gente usa o banheiro masculino, não se sente mulher, não usa peruca e, principalmente, não tem interesse nenhum em resolver de verdade esse cenário cruel no Brasil. Se tivesse, a última preocupação deles seria, no Dia Internacional da Mulher, apontar dedo para mulheres trans dizendo que são perigosas, malucas ou autoras de violência e pedofilia. Elas não são.

A única medida eficaz para proteger crianças de abusos é a educação sexual. Curiosamente, conversar com os pequenos sobre seus corpos, limites e consentimento é algo que os apoiadores de Nikolas também condenam publicamente. Importante a gente se perguntar o porquê disso.

Por falar em banheiro feminino, Nikolas tampouco se posicionou publicamente sobre a acusação de estupro envolvendo o jogador brasileiro Daniel Alves, que está preso na Espanha depois de violar uma mulher em um banheiro em Barcelona. O que se diz quando homens que se sentem homens estupram mulheres? No Brasil, pouca coisa.

Se fosse diferente, também teríamos escutado mais posicionamentos de homens que se sentem homens sobre as acusações contra Daniel Alves ou a condenação de Robinho por estupro coletivo na Itália.

Enquanto nada disso acontece, as mulheres, crianças e pessoas trans seguem vitimadas por agressões — diretas, estruturais e morais — sem que gente como Nikolas Ferreira se preocupe sinceramente com isso nem por um segundo. O interesse do deputado é fazer uma falsa ligação entre a comunidade LGBTQIA+ e o abuso de menores.

Não fosse tamanha a tragédia, a violência e a desinformação disseminada no discurso do deputado, seria cômico o momento em que ele se exalta porque "mulheres estariam perdendo espaço até mesmo em concursos de beleza".

A quais interesses das mulheres servem os concursos de beleza, mesmo? No momento, não me ocorre nenhum — mas a gente sabe que eles reforçam todas as opressões estéticas e comportamentais possíveis para muitas de nós. Se estão mudando e ficando mais inclusivos, a gente só acredita quando um corpo gordo levar a faixa de Miss Universo para casa.

Voltando ao discurso transfóbico do deputado, ele diz que "o perigo é esse, eu posso ir parar na cadeia caso seja condenado por transfobia". Incrível como a possibilidade de cadeia para alguns é sinônimo de integridade física e sobrevivência para outros que, ao contrário de Nikolas, não estão incitando violência nenhuma por simplesmente existir.

Atenção: para denunciar abusos, use os canais Disque 100 e Disque 180, que acolhem notificações de violações de direitos de públicos mais vulneráveis, como crianças, adolescentes, mulheres e idosos, entre outros grupos. As notificações podem ser anônimas. Os efeitos da violência se manifestam em indícios físicos, emocionais e comportamentais das vítimas.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL