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Luiza Sahd

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Por que só o Vini Jr?': a pergunta certa é 'por que na Espanha 10 vezes?'

Vini Jr. comemora gol do Real Madrid sobre o Al Ahly, pela semifinal do Mundial de Clubes - Alex Grimm - FIFA/FIFA via Getty Images
Vini Jr. comemora gol do Real Madrid sobre o Al Ahly, pela semifinal do Mundial de Clubes Imagem: Alex Grimm - FIFA/FIFA via Getty Images

Colunista do UOL

26/05/2023 04h01

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Depois de sofrer mais de dez episódios públicos de violência na Espanha ao longo de 2 anos e 7 meses, o jogador brasileiro Vinicius Jr e o debate sobre racismo finalmente viraram pauta no país — mas ninguém disse que a discussão seria de alto nível.

Em um breve passeio pelo noticiário e redes sociais espanholas, é chocante (mas não exatamente uma surpresa) a quantidade de vezes em que se pergunta "por que só Vini Jr é atacado se há tantos jogadores negros aqui?". Para embasar a tese — e o cinismo —, são mencionadas as dancinhas de Vini em campo e os "gestos provocativos" em que o camisa 20 do Real Madrid insinua que os adversários vão para a segunda divisão.

A primeira noção importante e pouco popular na Espanha é a de que o racismo é inegociável. Se alguém mata uma pessoa do meu lado e eu xingo o assassino de macaco, ele fica sendo um assassino, e eu, uma racista. Por incrível que pareça, essa ideia simples é muito melhor compreendida no Brasil do que por lá. As punições por racismo no futebol, também.

Morei em Madri por cinco anos e foi arrebatadora a experiência de ser racializada. Aqui, sou lida como mulher branca; lá, como latina e, por tabela, alvo de abusos inéditos até então — do espanhol que perguntou se eu pagava aquele aluguel caro só com dinheiro de jornalismo (insinuando que eu poderia ser trabalhadora sexual e alisando minha coxa) aos inúmeros "volta pro seu país" em contextos bastante banais. Sem falar no recrutador que me chamou para uma entrevista de emprego e, quando informei que era brasileira, tirou os olhos do meu currículo pra nunca mais tirá-los dos meus seios.

Se era duro para uma branca socialmente irrelevante lidar com a xenofobia local, não faço ideia do que seja para um preto poderoso. Fato é que um Vini Jr incomoda muita gente. E na Espanha, incomoda muito mais.

Com apenas 22 anos, Vini Jr já fez o melhor uso possível do privilégio de ser milionário e talentoso: chamar os racistas pelo nome. Infelizmente, isso não impede que ele sofra danos emocionais irreparáveis depois de ser agredido por milhares de pessoas, reiteradamente, sem que haja qualquer reparação adequada.

Que racismo?

Um relatório do Ministério da Igualdade espanhol divulgado em março de 2021 reconhece que não há dados oficiais estimando a população negra no país, mas basta circular por museus, restaurantes, discotecas e parques no centro de Madri ou de Barcelona para notar que eles quase nunca estão a passeio — e que muito raramente executam atividade formal e remunerada nessas zonas.

Essa disparidade também é imensa nos bairros ricos do Brasil, mas, na Espanha, é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que ver uma pessoa não branca se divertindo com os locais. Ou se relacionando com eles em qualquer medida. A xenofobia e o racismo se confundem e se misturam, dançam juntas, dando origem a uma bomba de segregação com um leve verniz de democracia racial.

Por contar com residentes de muitas partes do mundo, há poucas coisas que o espanhol médio goste mais de reafirmar do que o orgulho por ser "uma nação muito tolerante". Essa escolha de palavras já deveria ativar algum sinal de alerta, mas, incrivelmente, ninguém discute o fato de que tolerar é uma coisa, incluir é outra — e o país não está preparado para essa discussão.

Outro dado que revela o descaso com questões raciais na Espanha é o fato de não existir, na Constituição, nenhuma lei específica contra racismo ou injúria racial. As barbaridades a que Vini Jr tem sido exposto poderão ser classificadas, na melhor das hipóteses, como "crimes de ódio". Como se discute amplamente uma violação que não tem nem nome?

A dificuldade de debater racismo e xenofobia é tamanha que até célebres progressistas espanhóis se atrapalham — como foi o caso da quadrinista Flavita Banana, que misturou os temas "racismo no futebol" e "imigrantes mortos no Mediterrâneo" no liquidificador e acabou servindo a uma charge que compara, em um momento totalmente inoportuno, a situação de jogadores pretos (geralmente milionários) à dos refugiados na Espanha. É a pura polpa do desconhecimento de causa e contexto, mas é também falta de sensibilidade e interesse.

Seria errado dizer que pessoas não brancas são invisíveis na Espanha. Elas são diretamente indesejáveis, e o poder público não faz muita questão de agir contra essa realidade.

Os formadores de opinião espanhóis também não estão lá muito interessados nesse papo de diversidade racial, mas agora terão que lidar com perguntas complicadas: desde quando um negro precisa "evitar provocações" para não sofrer racismo? Em que mundo a responsabilidade pode ser da vítima? Por que jogaram uma banana para o Daniel Alves em 2014? O país é racista? Como assim?

Quanto ao questionamento "por que só com o Vini Jr?", repetido incansavelmente nas mídias locais, a pergunta certa é "por que na Espanha aconteceu dez vezes?".