Topo

Luiza Sahd

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por que 'White Lotus' é a melhor crítica da década às pessoas virtuosas

"The White Lotus", série do diretor norte-americano Mike White exibida pela HBO - Reprodução/HBO
'The White Lotus', série do diretor norte-americano Mike White exibida pela HBO Imagem: Reprodução/HBO

Colunista do UOL

12/12/2022 16h29

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Antes de mais nada, é preciso avisar que este texto chega com um caminhão de spoilers sobre o último episódio da segunda temporada de "The White Lotus". Dito isto, vamos a eles.

Só não gosta de ver milionário sofrendo quem tem milhões na conta corrente ou é fã de milionário — um público que só cresce, infelizmente. Mas esse não é, definitivamente, o público-alvo da série do diretor norte-americano Mike White exibida pela HBO.

Em síntese, "The White Lotus" é uma saga que se passa em resorts paradisíacos do Havaí (EUA) e Sicília (Itália), onde ricaços brancos lidam com problemas típicos de ricaços brancos. É uma ótima prerrogativa para rir sem culpa dos hóspedes do "TWL", mas quem espera que saia dali uma "crítica social foda" acaba desligando a TV com algumas pulgas atrás da orelha.

Desde a primeira temporada, o questionamento ético de personagens "moralmente corretos" (que se orgulham de suas virtudes) estava ali, quicando. As adolescentes Paula (Brittany O'Grady) e Olivia (Sydney Sweeney) esbanjavam consciência social no discurso, mas não abriam mão do luxo bancado pela mãe de Olivia — uma mulher que manifestava uma pena imensa do filho que estava crescendo "em um mundo que odeia homens brancos e ricos".

No afã de fazer distribuição de renda com as próprias mãos e dormir mais tranquila em relação aos próprios privilégios, Paula simplesmente destrói a vida de Kai, funcionário do hotel interpretado por Kekoa Kekumano. E depois? Paula segue para o aeroporto rumo ao destino brilhante que a aguardava, enquanto Kai provavelmente pereceria na cadeia.

Na segunda temporada da série, a punhalada aos personagens virtuosos vem ainda mais sutil e sofisticada. O melhor exemplo disso é o contraste entre os casais Harper e Ethan (Aubrey Plaza e Will Sharpe) e Cameron e Daphne (Theo James e Meghann Fahy) — apenas uma dupla surubeira mal compreendida que topava pegar os dois vizinhos de quarto para apimentar a própria relação. Na expectativa de serem ricos éticos, socialmente engajados e sinceros um com o outro, Ethan e Harper falharam miseravelmente quando submetidos à convivência com Daphne e Cameron, abertamente alienados e inescrupulosos.

Tudo na dupla surubeira apontava para a intenção de pegar o casal bicudo da suíte anexa: a escolha do quarto interligado por uma porta, o momento em que Cameron sugere uma broderagem com Ethan na cama, o trato sensual de Daphne com Harper em Noto e o desfecho entre Daphne e Ethan na Isola Bela. Só acredita que não rolou um adultério ali quem não prestou atenção à energia do casal certinho ao longo dos episódios. Ethan não teria trocado uma discussão por uma transa com Harper se não estivesse se sentindo vingado.

É justamente essa ambiguidade, presente em todos os personagens, que faz de "TWL" uma série única. Por mais que tentem ser perfeitos, Ethan e Harper erram um com o outro o tempo todo; e por mais que sejam ideologicamente questionáveis, Daphne e Cameron são um casal feliz dentro dos termos que inventaram para a relação deles.

Aubrey Plaza, de "The White Lotus", desabafa sobre críticas à sua atuação: "Tão cansada" - Reprodução/HBO Max - Reprodução/HBO Max
Harper (Aubrey Plaza), personagem que tenta ser 'rica ética' na série 'TWL'
Imagem: Reprodução/HBO Max

Outro paladino da justiça que deixou imperfeições à mostra foi Albie (Adam DiMarco). Filho de um rico diretor de Hollywood que se descobriu um predador sexual, Albie fez muitos discursos feministas que provocaram sonolência em Portia (Haley Lu Richardson) e apontavam o pai (Michael Imperioli) e o avô (F. Murray Abraham) como machistas abjetos. Mas o esquerdomacho termina a saga mais como machista 2.0 do que como exemplo a ser seguido — e não apenas pela secada em uma moça no aeroporto.

O próprio gesto de propor ajuda para limpar a barra do pai infiel com a mãe em troca de 50 mil euros mostraria que seus interesses são menos nobres do que o discurso de Albie faz parecer. Há ainda a possibilidade de que ele tenha combinado com a mãe de passar a perna no pai, mas convenhamos: essa tampouco seria uma saída heroica para o personagem virtuoso que Albie representa, sobretudo, para si mesmo. Mesmo que o dinheiro fosse destinado à adorável prostituta Lucia (Simona Tabasco), que lhe passou a perna.

No hall de bem-intencionados que não são tão perfeitos assim, Portia se destaca. Assistente pessoal da inesquecível Tanya (Jennifer Coolidge), Portia desconfia que a patroa poderia ser assassinada, mas segue o conselho de Jack, o garoto de programa interpretado por Leo Woodall, e se manda para o aeroporto sem tentar salvar o pescoço da milionária mais carismática do elenco. Quiçá, do mundo.

As personagens que não parecem lá boas pessoas no início da série também têm suas falhas matizadas ao longo da trama. É difícil não simpatizar com a gangue de gays golpistas que armam o assassinato de Tanya depois de muito se divertir com ela. E como não amar Lucia e Mia (Beatrice Grannò), que vivem de enganar as pessoas para comprar roupas caras?

The White Lotus - The White Lotus - The White Lotus
Cameron e Daphne (Theo James e Meghann Fahy), a dupla surubeira
Imagem: The White Lotus

Alguns espectadores ainda acreditam que Tanya e Portia estavam paranoicas e que a milionária não seria assassinada. O gaslighting de Mike White, dessa vez, foi com o espectador. Além da bolsa do amante de Tanya ter apenas corda, revólver e fita para amordaçar a vítima, é preciso lembrar que Greg (Jon Gries) havia proibido a esposa de levar a assistente para esta viagem — ela certamente atrapalharia os planos de assassinato da patroa - e da foto antiga de Greg com Quentin (Tom Hollander). Na minha fanfic pessoal, era com ele que Greg falava ao telefone o tempo todo, desde a primeira temporada.

A arte de "The White Lotus" vai muito além da fotografia perfeita, da abertura impossível de pular ou da alta cultura embutida nos pequenos detalhes como as esculturas sicilianas tradicionais; a série faz rir de nervoso, faz rir do que é errado, faz a gente descobrir que cometeria os mesmos erros — mesmo tendo todas as virtudes do mundo no horizonte e expostas em nossas redes sociais.

Nada disso indica que não valha a pena mirar na ética ou em valores e discursos progressistas para remar na vida, mas tudo faz pensar sobre a farsa que cada um de nós inventa para si mesmo, tentando dormir melhor.

Se isso é bom ou ruim, é outra história.

Errata: este conteúdo foi atualizado
A versão original desta coluna citava Daniel White como diretor da série. Na verdade, o correto é Mike White. A informação foi corrigida.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL