Topo

Luiza Sahd

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Rita Lee Jones, a mulher que viveu no ano 3000

Show de Rita Lee no Vale do Anhangabaú, no aniversário de São Paulo, em 25 de janeiro de 2013 - Ale Frata/Live Images/Código 19/Folhapress
Show de Rita Lee no Vale do Anhangabaú, no aniversário de São Paulo, em 25 de janeiro de 2013 Imagem: Ale Frata/Live Images/Código 19/Folhapress

Colunista do UOL

10/05/2023 04h01

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Nenhuma mulher precisa querer ter a vida que Rita Lee escolheu para si, mas todas deveriam ter a possibilidade de fazer as mesmas escolhas.

Nesta segunda-feira (8), uma das pessoas mais vividas do mundo partiu em sua casa, aos 75 anos, depois de uma existência tão intensa quanto um big bang. Não é exagero dizer que a rainha do rock mudou a história das mulheres sem nunca ter feito planos nesse sentido — Rita era avessa à militância, mas como toda boa revolucionária, não sabendo do que era impossível, foi lá e fez.

A infância em um entorno com todos os privilégios de uma paulistana de classe média não impediu que Rita experimentasse dores comuns de mulheres menos remediadas — de um estupro sofrido aos seis anos, dentro de casa, ao aborto no segundo casamento, passando pela dependência química e o diagnóstico tardio de bipolaridade, ela fez o mais difícil enquanto tudo aconteceu: assumir a própria história sem melindres e sem deixar que as demandas da vida engolissem seu talento imenso.

Enquanto produzia uma parcela significativa das melhores músicas brasileiras, Rita virava algo equivalente a uma super-heroína no imaginário coletivo. Que outra senhora casada (e amabilíssima mãe de três filhos) conseguiu emplacar hit atrás de hit sem abrir mão da vida de rock star ou do amor da família e dos amigos?

Pois Rita Lee conseguiu conciliar vitórias que parecem incompatíveis na vida de qualquer mulher, inclusive viver um amor de cinema, numa jornada cheia de aventuras e cercada de bons amigos. A esse respeito, Roberto de Carvalho, seu companheiro por quase 50 anos — e até o último suspiro — declarou: "É inconcebível que você esteja ao lado de uma estrela, que tem a necessidade de subsídios para brilhar, e se oponha a isso, que veja como uma ameaça".

Presa durante a ditadura militar por porte de maconha, a então gestante Rita Lee foi resgatada do cárcere por ninguém menos do que Elis Regina, que se tonou parceira musical e comadre.

Em sua autobiografia, Rita também contou que foi recolhida da sarjeta por Hebe Camargo quando teve problemas com o alcoolismo. Foi em Rita o primeiro selinho que Hebe deu na TV, inaugurando o gesto que seria a assinatura da apresentadora pelo resto de sua carreira.

Dentre os inúmeros marcos que Rita Lee Jones promoveu no comportamento de uma geração, o mais precioso talvez seja a noção de que não é recomendável, para nenhuma moça, pedir permissão para chegar aonde se deseja. Ela podia falar de música, de suruba, de drogas ou de família com a mesma naturalidade.

Para qualquer outra mulher que tente fazer o mesmo, desejo a proteção de Santa Rita de Sampa e muito boa sorte.

A completa ausência do medo de rejeição, que é das coisas mais humanas que existe, foi precisamente o motivo pelo qual todo mundo amava Rita Lee. Foi essa também a razão pela qual a artista parecia vir de outro planeta ou viver em outro tempo. Enquanto estávamos aqui lidando com as notícias do dia, Rita já vivia, claramente, no ano 3000 d.C. Sorvendo a vida até o bagaço.

Em sua nota de pesar para a amiga, o compositor Carlinhos Brown fez uma bela síntese sobre o que é testemunhar a existência de alguém como ela: "Rita, viajante do tempo, você será sempre a ovelha negra que lidera o pastor, que bagunça os credos e que mostra o verdadeiro caminho da fé que é amar os outros".

Rita Lee pode até ir, mas essa mania de viver fica com a gente.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL