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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Meu filho me perguntou se Pelé era melhor que Messi. O que responder?

Pelé abraça Jairzinho após título da Copa de 1970 - Divulgação/ Fifa
Pelé abraça Jairzinho após título da Copa de 1970 Imagem: Divulgação/ Fifa

Colunista do UOL

04/12/2022 04h01

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O brasileiro não tem um minuto de paz.

Passado o momento mais tenso da Copa do Qatar, chega a informação de que Pelé, 82, foi novamente internado. As notícias vindas do hospital não são animadoras.

Ali um outro jogo começou a ser travado.

Meu filho quis saber o motivo de tanta aflição. E, tateando ainda pelo mundo da bola, enfileirou cruzamentos na minha grande área com perguntas do tipo: Pelé jogaria nesse time hoje? (Eu ri). Ele era mesmo mais jogador que Messi ou Cristiano Ronaldo? (nem respondi).

E o que seria do nosso futebol sem ele?

Na última pergunta, corri para a estante e chamei em meu auxílio "A pátria em chuteiras", coletânea de crônicas escritas por Nelson Rodrigues entre 1955 e 1978, período em que ele e um país inteiro acompanharam com espanto a ascensão de um menino chamado Edson Arantes do Nascimento.

Não é que existia um futebol antes e depois de Pelé.

Existia um Brasil antes e depois.

Nelson Rodrigues explica: "Antes de 58 e de 62, o Brasil era um vira-lata entre as nações, e o brasileiro, um vira-lata entre os homens".

Mais: "Imaginem vocês um velório de ministro. Lá estava o morto ilustre, mais condecorado que uma árvore de Natal. O presidente da República comparecera, cochilando ao ouvido da viúva: 'Grande perda, grande perda!'. Mortalmente lisonjeada, a viúva quase caiu no chão, cravejada de brilhantes. Pois bem. E, súbito, ouve-se o berro: 'Olha o rapa!'. Foi um caos lá dentro. Senhoras subiam pelas paredes e se penduravam no lustre. Os homens se atiravam pelas janelas. Até o defunto saiu correndo. Eis o que eu quero dizer: aí estava um retrato do Brasil e do brasileiro. Éramos assim antes das Copas da Suécia e do Chile. Na nossa humildade feroz de subdesenvolvidos, tínhamos esse complexo ululante do rapa".

Foi essa "humildade feroz" que um menino de 17 anos começou a aposentar ao chapelar um gigante sueco na final da Copa de 58 e abrir o caminho para o título mundial — levando os amigos mais sisudos do cronista a aparecerem no dia seguinte para trabalhar com "o peito largo e escultural de havaiano de filme". Um peito que ninguém tinha na véspera.

Nelson se perguntava o que seriam as jogadas de Pelé, um jogador mais divino que humano, se não cínicos e deslavados milagres.

Em uma crônica de 1971, quando o Rei se despediu da Seleção, o autor lembrou de uma pergunta feita por Jean-Paul Sartre em uma visita, anos antes, ao Brasil: "Onde estão os negros?".

De fato, não havia nenhuma pessoa negra em nenhuma conferência do filósofo francês em seu giro pelo país no início dos anos 1960.

Pelé talvez tenha sido o primeiro a vestir a casaca e ser recebido como autoridade nos palácios oficiais. "Todas as casacas do Brasil deviam vesti-lo", escreveu Nelson.

Nesta semana, não teve quem não segurou as lágrimas ao ver a recepção de uma multidão calorosa aos integrantes dos Racionais MC's no Centro de Convenções do Ginásio Multidisciplinar da Unicamp para uma aula aberta aos estudantes do curso de antropologia. A disciplina? A influência dos Racionais no pensamento brasileiro.

Entre os conferencistas estava o santista Mano Brown, apresentador de um podcast de entrevistas fundamentais que se tornou meu parceiro de caminhadas sonoras. Brown disse no auditório estar diante de um momento histórico, já que Campinas, onde fica a universidade, foi a última a abolir a escravidão no país.

"A gente sempre vai encontrar obstáculos. Leva tempo pra gente se sentir acolhido e respeitado", disse.

Ele e os companheiros foram aplaudidos diversas vezes.

Detalhe: no mesmo dia, recebi o livro-objeto "2222", com ensaios e trabalhos visuais organizados por Ana Oliveira em homenagem ao disco homônimo lançado por Gilberto Gil há 50 anos e pensei: que potência é esse país. Será que um dia estaremos à altura dele? O que diria Sartre se estivesse por aqui agora?

Foi esse Brasil, reconhecido e admirado, aqui e lá fora, que Pelé ajudou a construir dentro de campo, embora tantas vezes tenha se omitido fora dele: um país de gênios aplaudidos e que não precisam pedir licença para passar. Havia uma Argentina antes de Messi, e uma Portugal antes de CR7. O Brasil pré e pós Pelé é outra coisa. É um país que passou a ocupar o centro do mapa.

Esse país hoje manda mensagem pelo mundo, a partir das arquibancadas dos jogos da Copa, para que seu gênio maior fique bem logo.

Que o Rei do Futebol esteja forte e com esperança para vibrar com Richarlison, Casemiro, Vini Jr. e outros herdeiros escalados para chutar para longe nosso complexo de vira-latas e manter uma torcida inteira altiva e de peito estufado.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL