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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Brasil cantado por Gil é muito maior do que a brutalidade de seus ofensores

Gilberto Gil (de azul) foi alvo de bolsonaristas durante Brasil x Sérvia - Reprodução/Twitter
Gilberto Gil (de azul) foi alvo de bolsonaristas durante Brasil x Sérvia Imagem: Reprodução/Twitter

Colunista do UOL

28/11/2022 10h57

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Tenho um pesadelo recorrente que envolve alguns de meus ídolos da música.

Nesses sonhos aflitivos, eu ando distraído pelo supermercado e topo de repente com Gilberto Gil e Caetano Veloso, juntos, escolhendo a marca de molho de tomate como quem discute a palavra certa para a próxima composição.

Cada sonho tem um desenlace diferente — e toda vez que volto a ele sinto que estou preso a uma distopia do tipo "Caverna do Dragão", em que rodo e rodo e volto sempre ao mesmo lugar.

Os arquitetos do meu sonho REM poderiam escolher um lugar mais apoteótico do que uma gôndola da ala de massas e molhos, mas vá lá.

Já teve episódio em que penso mil coisas a dizer aos dois dos maiores gênios da língua portuguesa mas, chegando perto, me limito a perguntar se a marca do extrato é boa mesmo (há ocasiões em que me aproximo e digo apenas que o preço dos perecíveis está os olhos da cara).

Há sonhos em que só travo e volto para casa pensando que impressões devo ter passado a eles. Eles me viram? Acharam que eu estava à altura do momento histórico?

Em outras ocasiões, vejo no encontro uma oportunidade de mostrar minha arte. É quando tiro do alforje, que nunca usei em vida, uns pedaços de papel e pergunto o que eles acham dos meus sonetos, que nunca compus.

Além do cenário (o mesmo supermercado da cidade onde nasci e que eles nunca pisaram), o que esses sonhos têm em comum é a sensação de derrota. Ela vem acoplada a um medo real diante de dois monumentos nacionais. O medo vem em forma de pergunta: "E se eles me acharem estúpido?"

Automaticamente a pergunta leva a uma outra, definitiva: "E se eles estiverem certos?"

Ouvir no repeat o meme "como você é burro, cara" do Caetano Veloso não tem ajudado no tratamento.

O fato é que, trabalhando como jornalista, seria mais provável encontrar com algum dos meus ídolos em alguma pauta do que no supermercado. Mas por sorte (ou azar, já não sei), nunca tive a possibilidade de testar meus medos na vida real. Melhor assim.

Na semana passada, alguns torcedores brasileiros materializaram em parte meus sonhos tortuosos e, diante de um imortal da ABL e sua companheira, a empresária Flora Gil, viram uma oportunidade única de mostrar a sua arte e relinchar.

Tudo aconteceu no estádio Lusail, no Qatar, onde Gil e Flora assistiram à estreia do Brasil na Copa.

Imagina?

Em uma arquibancada do outro lado do mundo, você tem no mesmo dia a chance de assistir, em tempo real, à elaboração de uma obra-prima produzida pelo voleio do Richarlison e, ao virar para o lado, do nada, encontra uma entidade que nos ensinou a falar com Deus, a andar com fé e a festejar com aquele abraço tudo o que temos de mais belo. Imagina estar diante de Gilberto Gil e só conseguir proferir as palavras "vamos, Lei Rouanet", "vamos, Bolsonaro", além de algumas ofensas e palavrões? Em que pesadelo esses caras vivem?

Na música "Back in Bahia", Gil cantou que certa vez, em Londres, a sensação de distância com seu país era tanta que só restava a ele puxar os cabelos, nervoso, e ouvir Celly Campelo pra não cair na fossa.

No Qatar, o ex-ministro da Cultura, que acaba de completar 80 anos, provavelmente deve ter pensado que não há distância maior entre o país sonhado e celebrado em suas músicas e o que os arautos da destruição querem impor por aqui. A distância está na ironia de um dos detratores que ironizam a contribuição de Gil ao Brasil — talvez só comparável aos escritos de Machado de Assis, Clarice Lispector, Guimarães Rosa e outros cânones, que os agressores certamente chutariam se estivessem à sua frente.

E quem pode ter feito mais pelo país senão quem falou mais fundo em nossa alma? Os riquinhos mimados que pegaram o dinheiro do papai e foram brincar de patriotas nas arábias? Os turistas que viajaram para o outro lado do mundo para mostrar seu deserto moral?

Se dependesse da turma, os dicionários da língua portuguesa se resumiriam a alguns verbetes sobre leis de incentivo à cultura, que não conhecem, e sobre uma ideia torta de patriotismo que reivindica o monopólio da brasilidade desprezando o que temos de mais rico no país. A começar pela música.

Dias após o episódio, Gil gravou um vídeo agradecendo a onda de solidariedade vinda de seu país — o mesmo que Bolsonaro e seus fãs tentam, em vão, golpear e destruir para instalar um deserto físico e imaterial no lugar.

Se encontrasse Gil no supermercado ou numa arquibancada hoje, eu lembraria apenas que esse tempo de brutalidade orgulhosa há de passar depressa, como tudo tem de passar.

Passado esse novo exílio que muitos obrigaram parte do Brasil a enfrentar, todos também nos sentiremos como se ter ido fosse necessário para voltar.

Não tem nada que possa ser dito após ouvir um conselho desses, pelas músicas, a não ser "obrigado".

A resistência a essa gente hipócrita e estúpida é árdua, mas ela tem uma bela trilha sonora.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL