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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Mito, lenda ou divindade? O que é e de onde vem o 'culto' ao Papai Noel

Papai Noel em um trenó no Polo Norte no Natal - Getty Images
Papai Noel em um trenó no Polo Norte no Natal Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

23/12/2022 04h01

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Papai Noel foi enforcado e incendiado publicamente nas grades da Catedral de Dijon, na França, na véspera do Natal de 1951. A réplica do bom velhinho, com suas longas barbas brancas, queimou sob a pecha de heresia em um tempo em que escolas eram acusadas de substituir o espírito natalino, representado no presépio, por uma projeção comercial.

Cerca de 250 crianças de orfanatos da cidade assistiram à cena, que contou com o aval do clero local.

Ao fim do espetáculo, um comunicado foi distribuído aos presentes: "A mentira não pode despertar o sentimento religioso na criança. (...) O Natal deve continuar a ser o festejo que comemora o nascimento do Salvador".

O episódio é descrito pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss no ensaio "O Suplício do Papai Noel", livro que revisitei dias atrás após saber que a figura do Papai Noel foi remodelada no Brasil de 2022 para não ser confundido com um agente vermelho infiltrado pelo comunismo nas trincheiras comerciais.

Algumas lojas optaram por vestir seus atores de azul. Outras simplesmente aboliram a figura e a substituíram por ursos gigantes.

Mais um pouco e, para dar exemplo às crianças, bonecos do bom velhinho serão queimados por aí sob as bênçãos de extremistas religiosos, o que leva à mesma premissa de Lévi-Strauss em seu ensaio: não importam as razões que levam as crianças a gostarem de Papai Noel e sim as razões pelas quais os adultos o inventaram.

Essa invenção assumiu a forma americana como a versão moderna de uma festa que reúne elementos pagãos e religiosos que remontam à Roma Antiga e à Idade Média.

O Papai Noel como o conhecemos se veste de vermelho porque seria um rei; as peles, as botas e o trenó evocam o inverno. E a barba branca de quem é chamado de "papai" confere, segundo o autor, "a forma benevolente da autoridade dos antigos".

O antropólogo observa, no entanto, uma dificuldade em encontrar uma classificação do ponto de vista da tipologia religiosa para ele.

Papai Noel não é um ser mítico porque não existe um "mito" que explique sua origem e suas funções.

Não é uma "lenda" porque não possui narrativa semi-histórica ligada a ele.

O mais correto, defende, é compreendê-lo como uma espécie de "divindade", a quem as crianças prestam culto em certa época do ano sob a forma de cartas e pedidos.

"A única diferença entre Papai Noel e uma verdadeira divindade é que os adultos não creem nele, embora incentivem as crianças a acreditar", diz.

Isso não é um detalhe. Segundo o antropólogo, a figura do Papai Noel serve a um rito de passagem: no momento certo, as crianças, excluídas da sociedade dos adultos, saberão a verdade e passarão a integrar aquele mundo.

Esses ritos de iniciação têm uma função prática, como em qualquer sociedade. Ajudam os mais velhos a manter a ordem e a obediência entre os mais novos.

"Durante o ano todo invocamos a vinda de Papai Noel para lembrar as crianças que a generosidade dele será proporcional ao bom comportamento", escreve Lévi-Strauss, para quem o próprio caráter periódico dessa distribuição ajuda a disciplinar as reivindicações infantis e o "direito" de exigir presentes.

A crença em Papai Noel, portanto, é o "resultado de uma negociação muito onerosa entre duas gerações".

Mas de onde vem essa figura? O personagem moderno, prossegue o autor, resulta da fusão entre várias figuras, como o Abade de Liesse, um bispo-menino eleito sob a invocação de São Nicolau, e o próprio São Nicolau, um protetor das crianças cuja festa deu origem à tradição envolvendo meias, sapatos e chaminés.

Lévi-Strauss diz haver boas razões para supor que a Igreja tenha fixado o Natal em 25 de Dezembro para que a comemoração natalina substituísse as festas pagãs celebradas primitivamente em 17 de dezembro, data da Saturnália, um festival em honra ao deus Saturno (um devorador de crianças), e que, no fim do Império Romano, duravam uma semana.

Da Antiguidade até a Idade Média, as casas eram decoradas com folhagens verdes, crianças recebiam presentes e pobres e ricos, senhores e servos, confraternizaram juntos, como se as diferenças ficassem temporariamente abolidas.

A tradição (ou pelo menos o seu propósito) foi mais ou menos mantida desde então. Com uma diferença: no Natal medieval, os adolescentes (uma categoria entre as crianças e os adultos) elegiam uma espécie de soberano (o bispo da juventude) e se entregavam a condutas enlouquecidas, promovendo blasfêmias, roubos e até assassinatos. Cabia a esse bispo-menino comandar os excessos e mediar o caráter duplo dessa época do ano, marcada até então por uma solidariedade acentuada e um antagonismo exacerbado.

Com o tempo, esse jovem bispo assumiu as feições de um homem velho — e a estética da festa de São Nicolau, com suas meias e sapatos, em 6 de dezembro, "migrou" para a festa natalina.

Em outras palavras: Papai Noel é o herdeiro e a antítese do Senhor da Desrazão empoderado pelos jovens medievais nessa época do ano.

Foi assim, de acordo com Lévi-Strauss, que "uma emanação da juventude, simbolizando seu antagonismo em relação aos adultos, fez-se símbolo da idade madura" e "os adolescentes abertamente agressivos com seus pais são substituídos pelos pais, que se ocultam sob barbas postiças para cobrir crianças de presentes" — não sem antes dizer que elas precisavam se comportar para ganhá-los.

Na Idade Média era comum que as crianças, em vez de aguardar os presentes, saíssem de casa em casa cantando e apresentando votos, evocando mortos e recebendo doces e frutas — num ritual muito parecido com o que vemos ainda hoje no Halloween, e não por acaso: os eventos marcaram o começo e o final do outono nos países do Norte, onde a noite passava a substituir o dia.

Pois, como anotou Lévi-Strauss, ainda hoje nos países anglo-saxões as crianças se vestem de mortos para extorquir adultos e no Natal recebem presentes em uma data em que a luz e a vitalidade são exaltadas.

O autor, a essa altura, se pergunta de onde vêm "os ternos cuidados que temos com Papai Noel, as precauções e sacrifícios que aceitamos para manter seu prestígio intocado junto às crianças".

"Não será porque, lá no fundo, ainda persiste a vontade de acreditar, por pouco que seja, numa generosidade irrestrita, numa gentileza desinteressada, num breve instante em que se suspende qualquer receio, qualquer inveja, qualquer amargura?", questiona.

A pergunta segue válida mais de 70 anos depois.

Acreditando em Papai Noel, diz o autor, as crianças consentem em nos ajudar a acreditar na vida. Não é este, afinal, o espírito da festa cristã?

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL