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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Damares repete falácia bolsonarista ao comentar tragédia dos yanomamis

Segundo o Ministério dos Povos Indígenas, ao menos 99 crianças morreram em 2022 vítimas de desnutrição e outras doenças em terras yanomamis - Urihi Yanomami
Segundo o Ministério dos Povos Indígenas, ao menos 99 crianças morreram em 2022 vítimas de desnutrição e outras doenças em terras yanomamis Imagem: Urihi Yanomami

Colunista do UOL

23/01/2023 12h02

Um amigo costuma dizer que um dos aspectos mais intrigantes do bolsonarismo é que, para seus seguidores, todos os problemas do Brasil seriam facilmente resolvidos a partir da adoção de uma medida simples, assim mesmo, no singular, para problemas complexos. A solução varia de tempos em tempos.

Controle de natalidade, nióbio, cloroquina, urna impressa, imunidade de rebanho, intervenção militar: basta que uma dessas soluções mágicas, tratadas obsessivamente em algum momento de hiperfoco, seja aplicada para que todo o resto se desenrole e o país entre na rota do desenvolvimento das grandes potências mundiais.

O mesmo amigo chegou à conclusão no dia em que ouviu de um motorista, fã de Jair Bolsonaro (PL), passar uma viagem explicando por A mais B que todos os problemas do trânsito do país se resolveriam automaticamente com a simples troca do material com que são construídas nossas ruas e estradas.

A senadora eleita Damares Alves (Republicanos-DF) provou a tese ao se pronunciar sobre a inaceitável situação do povo yanomami, visibilizada após uma visita do presidente Lula (PT) a uma unidade de saúde indígena na zona rural de Boa Vista (RR).

Segundo o Ministério da Saúde, 570 crianças foram mortas por desnutrição e fome devido ao impacto do garimpo ilegal próximo dessas terras.

As imagens de jovens e anciãos em pele e osso, como prisioneiros ou sobreviventes de guerra, correram o mundo.

Damares era ministra da Família, Mulheres e Direitos Humanos quando, segundo especialistas, a situação se agravou devido a fatores como má gestão em saúde pública, precarização da infraestrutura de atendimento, desmonte de políticas voltadas a populações indígenas e o avanço do garimpo.

No Twitter, no domingo (22), Damares disse ter acompanhado "com dor e a tristeza" as imagens sobre a situação dos yanomamis e negou que tenha havido descaso em relação às denúncias sobre violações de direitos dos indígenas encaminhadas a seu ministério.

Ela afirmou que o governo Bolsonaro reconhecia a desnutrição como uma violência e que providenciou o envio de cestas básicas ao local no auge da pandemia.

Para responder às críticas de omissão, ela postou uma série de reportagens sobre a desnutrição de crianças indígenas publicadas entre 2007 e 2011, durante o governo petista, no Vale do Javari, localidade distante da unidade de saúde visitada por Lula.

Damares não erra em dizer que a questão é um problema histórico e não começou nos últimos quatro anos. Mas peca ao deixar implícita a solução para enfrentar "a raiz do problema".

"Sempre questionei a política do isolamento imposta a algumas comunidades. Está na hora de uma discussão séria sobre isso. Ao invés de perdermos tempo nessa guerra de narrativas e revanchismo, proponho um pacto por todas as crianças do Brasil, de todas as etnias."

Damares repete, assim, o mantra repetido à exaustão pelo mito fundador da seita segundo o qual existe uma "política de isolamento imposta" às populações indígenas no Brasil e que todos os males enfrentados por esses povos residem ali.

É a velha ideia de que existe uma sociedade "civilizada" e outra condenada ao estado natural, e que a assimilação cultural e econômica de cima para baixo seria a única solução para todos os conflitos, e não o começo de (muitos) outros problemas.

Pela lógica, não haveria fome se os habitantes das aldeias mudassem seus hábitos, trabalhassem no esquema PJ para donos de garimpos e vendessem o excedente em barraquinhas de beira de estrada que fatalmente cortariam o que antes foram suas casas. Simples, não?

Como ninguém pensou nisso antes? Será que é por isso que não existe miséria, fome ou desnutrição nas grandes cidades, o centro dessa grande civilização perfeitamente bem integrada?

Bolsonaro, quando deputado, chegou a dizer que a cavalaria brasileira era incompetente porque, diferentemente de sua homóloga norte-americana, não havia conseguido exterminar seus "índios" [sic] e se livrado de um "problema" persistente nos dias atuais. O diagnóstico justificava seu projeto para tornar sem efeito a reserva yanomami.

Quando presidente, o mesmo Bolsonaro costumava dizer que "o índio [sic] é um ser humano igual a nós" e que era preciso integrá-los "à sociedade" para que ele fosse "realmente dono de sua terra indígena".

Damares e o ex-chefe parecem (só parecem) ignorar que essa integração forçada com o que chamam de sociedade já está em curso há muito tempo, e não por escolha das vítimas.

O avanço do garimpo em áreas que deveriam ser protegidas, segundo explicou ao jornal O Globo o pesquisador do Instituto Socioambiental Estêvão Benfica Senra, criou lagoas de água parada que hoje servem como criadouros de mosquitos. Isso explica a explosão de casos de malária, uma doença transmitida de maneira exponencial à medida que os indígenas adoecem sem atendimento básico — afetado até pelo uso de pistas de pouso hoje tomadas por garimpeiros.

As substâncias químicas usadas por garimpeiros contaminam e provocam assoreamento nas águas. Isso explica a explosão de casos de diarreia.

Como os yanomamis são povos de recente contato e, portanto, não possuem imunidade a uma série de viroses comuns em outras regiões, a proximidade com os mineradores se transforma em um grande risco.

Adoecida e aliciada pelo garimpo, a população atingida (logo, integrada) ao que Bolsonaro e companhia chamam de "sociedade" não consegue manter suas atividades históricas, como peça, caça e cultivo de roças, de acordo com Senra.

Na fatídica reunião de 22 de abril de 2020, Damares dizia que indígenas eram contaminados "de propósito" em Roraima e na Amazônia para dizimar aldeias com covid-19 e jogar a culpa "nas costas do presidente Bolsonaro".

Era essa a preocupação da ministra e do próprio presidente desde o começo: tirar das costas qualquer culpa por atos e omissões, de preferências com a criação de inimigos imaginários.

Os representantes do governo que queria escamotear os dados sobre a pandemia agora se rebelam com a divulgação das imagens dos yanomamis.

A visão torpe, alimentada por má-fé ou ignorância, sobre a questão indígena no país fez com que os responsáveis por cuidar dessas populações elegessem como "solução" o que, na verdade, resultou em uma grande tragédia humanitária.

Ir à raiz do problema exige entender para onde vai o produto tão explorado e buscado em terras indígenas. Talvez na joalheria do shopping das melhores famílias.