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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Morre Adriana Dias, antropóloga que mapeou a ascensão neonazista no Brasil

Professora da Unicamp, Adriana Dias deixou um legado na luta contra o neonazismo -  Assembleia Legislativa de São Paulo
Professora da Unicamp, Adriana Dias deixou um legado na luta contra o neonazismo Imagem: Assembleia Legislativa de São Paulo

Colunista do UOL

30/01/2023 12h11

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Alguns meses atrás, a antropóloga Adriana Dias me enviou uma mensagem em tom de desabafo. "Tem oito [dias] que saí do coma. Fiquei dez dias entubada, mais alguns na UTI. E ainda tem gente que, mesmo sabendo disso, tem coragem de me ligar para pedir entrevista. Você acredita? A sua classe precisa rever seus valores."

Apesar da bronca, que me deixou envergonhado pelos colegas, o assunto da mensagem era outro. "Gostei muito da sua última matéria. Estou ligando pra saber do seu filho e de como está a sua família. Um beijo grande no seu coração. Você é um amigo querido." Foi a última mensagem dela para mim — Adriana morreu neste domingo (29), vítima de um câncer.

A mensagem, um áudio de WhatsApp, era um resumo das nossas conversas desde que falamos, para uma entrevista, pela primeira vez. Entre problemas particulares e indignação, havia sempre espaço para demonstração de afeto, numa relação de amizade que com o tempo se sobrepôs à relação jornalista-entrevistada.

Adriana era assim: nos momentos mais tensos, ela não se esquecia da gente e cobrava notícias. Dos amigos, da família, do trabalho.

Naquele dia ela me fez uma promessa: assim que melhorasse, íamos fazer um segundo grande jantar em sua casa, junto com nossas famílias.

O primeiro aconteceu no fim de 2019. Ela queria saber o que eu gostava de jantar. Comida italiana? Brasileira? Árabe?

Escolhi a última opção. Chegando lá, tive a impressão de que ela tinha gabaritado todos os pratos da culinária árabe. Tinha tudo à mesa.

A promessa de reencontro parecia factível, apesar da pandemia e de sua condição física cada vez mais debilitada, o que a obrigava a passar dias em hospitais, de onde saía, enviava, e pedia notícias de tudo e de todos. Ela sempre voltava.

Da última vez, não voltou.

A morte de uma amiga não deveria nos autorizar a repetir alguns clichês que costumamos dizer nessas horas. Mas há casos em que não tem como fugir. Sim, ela descansou. Sim, seu legado é imenso. E, sim, a perda é irreparável.

Ninguém melhor que ela soube alertar, em números, os perigos do avanço do extremismo no Brasil. Quando ela dizia que era preciso "desnazificar" o país, ela sabia o que estava dizendo. Não era força de expressão: era risco iminente, auferido pela explosão de células neonazistas no Brasil que ela capturava em mergulhos pelas camadas mais violentas da deep web.

Em 2019, quando conversamos sobre o tema pela primeira vez, ela havia identificado 334 grupos do tipo.

Em 2022, eram mais de 500.

Essa explosão era resultado de uma sociedade arregimentada no ódio, que ela percebia já nas comunidades de Orkut, e estruturada no culto à masculinidade, no desprezo por minorias e na construção de um "outro conveniente" — indivíduos que acessam direitos, como o sistema de cotas, e são atacados por serem acusados de "roubar o lugar" de grupos hegemônicos cada vez mais ressentidos e amedrontados.

Nos fóruns de ódio, ela observava um comum segundo o qual o homem branco está sob risco em razão do casamento interracial e da adoção de crianças negras, por exemplo.

Essa luta exigia um alerta permanente e deixou conhecida como "caçadora de nazistas". (Ela me puxava a orelha sempre quando usava essa expressão. O nazismo, afinal, estava restrito a um período histórico; seus herdeiros deveriam, portanto, serem chamados sempre de neonazistas).

No auge da pandemia, ao observar como a morte havia sido banalizada por Jair Bolsonaro, segundo quem o vírus seria fatal "apenas" para uma minoria sem "histórico de atleta", a pesquisadora, que sofria com uma osteogênese imperfeita e militava em defesa de pessoas com deficiência, se indignou: "Lutei muito para chegar onde cheguei, apesar dos meus problemas respiratórios e da minha doença crônica óssea, que dificulta muito a intubação respiratória. Eu tenho doutorado pela Unicamp, combato neonazismo no Brasil, lutei muito pelo direito das pessoas com deficiência, das mulheres, contra o racismo. Escrevi mais de 60 leis, entre municipais, estaduais e federais, em vertentes de direitos humanos diversos. Tudo foi conquistado com muito esforço. E está sendo dito que minha vida é eliminável".

Ela apontava o capacitismo como um ponto de conexão entre o enfrentamento da crise sanitária e a ascensão nazista.

Se soubesse que, após os dez dias de internação, aquele áudio seria nossa última conversa, teria feito pelo menos uma promessa: vamos fazer de tudo para que esses tantos alertas que ela deixou sigam em evidência, sem descanso.

Adriana não viveu para assistir à derrota do extremismo. Talvez nenhum de nós assista.

Mas muitos passos foram dados nessa direção, graças a esforços de pessoas como ela, hoje reconhecidas pelos responsáveis por seguir a mesma luta, entre eles os gestores do Museu do Holocausto, que a homenagearam em uma postagem, e o ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida.

"Adriana foi uma mulher com deficiência de referência para nós e nos estudos sobre neonazismo. Aguerrida ativista pelos direitos humanos, colaborou na efetiva denúncia de ações nazistas no Brasil. Feminista por ideologia, Adriana integrou a Frente Nacional de Mulheres com Deficiência. Foi também coordenadora da Associação Vida e Justiça de Apoio às Vítimas da Covid-19. Expressamos aqui nossa homenagem em agradecimento a essa grande mulher, e enviamos nossos sentimentos à família", escreveu o ministro, em nota de pesar.

Em outros tempos, haveria sobre ela um absoluto silêncio das autoridades.

As homenagens, agradecimentos e testemunhos publicados por tanta gente que Adriana Dias inspirou apontam para novos tempos. Tempos mais generosos, como ela foi. Tempos pelos quais sempre lutou.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL