Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Chacina em Sinop: povo armado e povo alvejado pelos motivos mais fúteis
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Sim, as imagens são fortes. Ainda assim, é preciso assistir até o final.
Em um bar de Sinop, potência do agronegócio e município com o maior PIB de Mato Grosso, um homem de 30 anos entrou armado em um bar com uma espingarda calibre 12 e promoveu uma chacina. Ele estava acompanhado por um comparsa, que morreu pouco depois, em uma suposta troca de tiros com a polícia.
Nos vídeos que correm pelas redes, é possível ouvir o estouro seco dos disparos. Sete pessoas morreram, entre elas uma menina de 12 anos.
O assassino, Edgard Ricardo de Oliveira, era colecionador de armas e ostentava seu arsenal em suas páginas pessoais. Por lei, ele não poderia ter acesso a armas, já que tinha antecedentes de violência doméstica.
As vítimas em Sinop foram alvejadas muitos anos antes por uma sequência de "falhas" no sistema de registros de armas que permitiu a um assassino em potencial circular por aí armado e sem ser incomodado.
As "falhas" aqui levam aspas porque fazem parte de um projeto bem-sucedido: um projeto que nos últimos quatro anos empoderou defensores da tese de que "povo armado jamais será escravizado".
A paranoia levou uma multidão de brasileiros a se proteger contra o perigo que mora ao lado — geralmente em suas próprias casas. Em 2017, o Brasil possuía 637 mil armas registradas; quatro anos depois, eram mais de 1,5 milhão.
A corrida armamentista foi alimentada a partir da ideia de que todo cidadão de bem tem o direito a se defender.
Essa é a teoria. Na prática, quem não teve direito de se defender foram pessoas como o pai de família assassinado junto com a filha de 12 anos em um bar onde dois criminosos foram levados a acreditar que entre seu conceito de justiça e a ação não existem leis, Estado ou qualquer mediação. É cada um por si e ninguém por ninguém.
Em um país fundado na violência e no genocídio, quem enriqueceu vendendo armas enriqueceu prometendo fechar as pontas soltas dos nossos curtos-circuitos sociais não com leis, escolas e trabalho de compreensão, mas com pólvora. Não tinha como dar certo.
Em Sinop, o principal responsável pela naturalização dessa ideia recebeu 77% dos votos no segundo turno das últimas eleições presidenciais. A questão do armamento era o ponto de discordância mais notável entre Jair Bolsonaro (PL) e Lula (PT).
Bolsonaro perdeu a eleição, mas manteve seus enclaves intactos, deixando como herança um país cindido e disposto a ir à guerra pelo que acredita. O resultado está aí.
Uma bala de calibre 12 pode acertar seu alvo a 420 metros em um segundo. É doentio imaginar que, se o oponente estiver igualmente armado, terá tempo de pensar o que fazer, como numa cena de "Matrix". Principalmente quando a vítima tem 12 anos.
Como tantos, o assassino de Sinop ostentava suas armas e inspirava seus seguidores a se proteger contra riscos representados por criminosos. Faltou dizer que o criminoso era ele mesmo.
Suas armas foram usadas como vingança após ele e o parceiro perderem uma aposta em um jogo de sinuca. A aposta valia R$ 4.000. As sete vidas ceifadas não valiam nada.
Os brasileiros que queriam se armar para não serem escravizados hoje são reféns do medo de serem assassinados por motivo torpe ou fútil.
Dias atrás, em Campo Grande (MS), um comerciante foi morto a tiros durante uma audiência de conciliação no Procon porque o cliente se negava a pagar uma cobrança de R$ 630. A razão da contenda era uma dívida pelo conserto do motor de uma camionete blindada.
Em Piraju (SP), um jovem morreu após tentar desarmar um amigo que queria resolver na bala uma contenda com um segurança durante uma festa de Carnaval.
Em Ourém (PA), dois irmãos foram assassinados a tiros, também no Carnaval, após um esbarrão, seguido de uma tensa discussão, com um homem e sua namorada.
Não tem quem não circule pelas ruas do país sem o temor de virar alvo pelas razões mais mesquinhas: uma discussão no trânsito, um pedido para vizinhos diminuírem o som, uma bronca por estacionar em vaga proibida, um simples esbarrão ou uma jogada de sinuca.
Não faltam razões para morrer em um país que mercantilizou a morte e transformou o problema do armamento em "solução". A solução é uma pilha de vítimas alvejadas pelos motivos mais frívolos.
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