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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Nota de associação gaúcha é uma afronta e não tem pé na realidade

Pessoas resgatadas de trabalho análogo a escravidão retornam à Bahia - Divulgação/Governo da Bahia
Pessoas resgatadas de trabalho análogo a escravidão retornam à Bahia Imagem: Divulgação/Governo da Bahia

Colunista do UOL

02/03/2023 04h01

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Três pessoas recrutadas na Bahia para trabalhar na colheita da uva no Sul do país fugiram de um alojamento em Bento Gonçalves (RS) e procuraram a polícia em 22 de fevereiro. No mesmo dia, uma operação da Polícia Rodoviária Federal resgatou mais de 200 homens submetidos a trabalho análogo à escravidão.

Contratados pela Fênix Serviços Administrativos, empresa que fornecia mão de obra para grandes vinícolas da região, as vítimas contaram ter sido ameaçadas, torturadas e extorquidas.

Na terça-feira (28), o CIC (Centro da Indústria, Comércio e Serviços) de Bento Gonçalves divulgou uma nota que ajuda a entender como a situação chegou até ali.

O "posicionamento" atribui o crime flagrante a uma suposta falta de mão de obra na cidade. Isso porque, segundo a entidade, haveria "uma larga parcela da população com plenas condições produtivas e que, mesmo assim, encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade".

A relação entre um suposto déficit de força de trabalho e políticas assistenciais, segundo José Dari Krein, professor do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho do Instituto de Economia da Unicamp, não tem nenhum pé na realidade.

A partir de dados da Pnad, o especialista estima que o Brasil possui hoje cerca de 60 milhões de pessoas em situações de trabalho precário, desalentadas ou sem qualquer tipo de emprego. "Falar em déficit de trabalho não condiz com esses dados. No Brasil não é possível dizer que falta força de trabalho. Aqueles trabalhadores saíram de seus estados justamente porque estavam em busca de uma vida melhor."

Krein afirma que as políticas de transferência de renda, como o antigo Auxilio Brasil, rebatizado novamente como Bolsa Família, têm o efeito justamente de impedir a reprodução das condições de trabalho precárias flagradas na Serra Gaúcha.

"O problema da questão do mercado de trabalho é que os salários são muito baixos. Se as empresas estivessem pagando salário decente e oferecendo perspectiva profissional, com proteção e qualificação, duvido que faltaria força de trabalho."

Para o professor, é um equívoco pensar que, se não houvesse Bolsa Família, haveria mais força de trabalho disponível. "O problema é pensar que se pode reproduzir em pleno século 21 uma situação de precariedade como encontrada ali. É uma visão estreita, de curto prazo. Qual a diferença entre a reflexão do centro comercial e a ideia de trabalho do século 19?"

A nota do centro comercial, segundo ele, é uma afronta e reproduz uma ideia sem base na realidade segundo a qual os programas de transferência de renda alimentam a "vagabundagem". "A questão é que as pessoas não querem se submeter a uma situação degradante de trabalho. O efeito dos programas de transferência de renda é absolutamente salutar para a sociedade. Se quisermos ter uma sociedade minimamente mais civilizada é preciso dar centralidade para o trabalho. E trabalho não é simplesmente um instrumento para as pessoas sobreviver. O trabalho tem que ser considerado uma expressão de organização da vida social."

A nota foi seguida de um discurso violento de um vereador da vizinha Caxias do Sul, que ironizou a situação dos trabalhadores ("queriam um hotel cinco estrelas?") e usou a tribuna da Câmara Municipal para atacar moradores da Bahia e defender a contratação de argentinos. A fala, segundo Krein, demonstra que o ódio segue destampado na sociedade brasileira desde as últimas eleições, nas quais o Sul votou em peso em Jair Bolsonaro (PL), e os estados do Nordeste, em Lula (PT).

Para a socióloga Marta Bergamin, coordenadora da pós-graduação em Sociologia da FESPSP (Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo), é preciso entender a mensagem do centro comercial de Bento Gonçalves no contexto de uma disputa política aberta no país.

Ela lembra que alterações nas leis de trabalho foram colocadas em discussão nos últimos anos. Bolsonaro, por exemplo, já criticou publicamente o combate ao trabalho escravo pelo Ministério Público do Trabalho e se negou a regulamentar uma emenda constitucional que punia com expropriação a propriedade onde fosse flagrado esse tipo de crime.

Para ela, a nota da associação é uma "nota política" e deixa a entender que a situação seria outra se o governo anterior fosse reeleito.

O CIC, segundo ela, endossa a ideia de que a regulamentação de direitos trabalhistas, assim como o combate à exploração do garimpo ilegal na Amazônia, impediria a criação de mais empregos e o crescimento da economia. "As empresas, que são grandes companhias, se sentem autorizadas a fazer isso. É como se elas apostassem em uma mudança na legislação que não aconteceu. E havia um lobby muito grande para que mudasse. Em um mercado desregulado, selvagem, tudo é permitido. A nota reforça isso", diz.

Bergamin afirma que políticas como o Auxílio Emergencial eram validadas, no governo anterior, porque serviram como ferramenta à campanha de reeleição. O programa, porém, era mal feito, segundo ela, porque beneficiou muita gente que não precisava e deixou outros tantos na fila.

"O que a nota reforça é que as empresas não querem pagar o valor do trabalho e veem programas como o Bolsa Família como concorrência. Para não pagar direitos, preferem submeter as pessoas mais frágeis da sociedade a aceitarem trabalho sob qualquer condição. Vejo isso como um avanço brutal da desigualdade. Como se as pessoas precisassem se submeter a esse tipo de trabalho, com requintes de violência, porque não têm outra opção. E a aposta das empresas era essa: uma aposta no rebaixamento das condições de trabalho em um dos países mais desiguais do mundo."

No governo Bolsonaro, um mantra repetido à exaustão pelo então presidente é que a geração de mais empregos estava associada à diminuição de direitos.

Segundo o professor Krein, porém, essa afirmação carece de comprovação empírica em qualquer lugar do mundo. "A renda do trabalho é injetada na economia, você cria hubs de consumo mais saudável, faz a economia crescer. Salário é isso: é renda, não só um custo."

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL