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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Atropelou, matou e foi debochar nas redes. E big techs fingem não ter culpa

Colunista do UOL

02/05/2023 14h15

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Uma sequência de postagens feitas por um motorista de aplicativo, em suas redes sociais, debochando de uma pessoa que acabara de atropelar em São Paulo levou o Ministério Público a apurar as circunstâncias do caso registrado inicialmente como "morte suspeita" ou "acidental".

"Menos um fazendo o L", disse Christopher Rodrigues, 27, enquanto Matheus da Silva, 21, agonizava embaixo do seu automóvel.

Silva era suspeito de furtar o celular de dentro de um outro veículo. A polícia apura se o atropelamento teria sido mesmo um acidente, como alega oficialmente o condutor, ou homicídio doloso, quando há intenção de matar.

As postagens, um conjunto de provas produzidas pelo motorista contra ele mesmo, dão algumas pistas.

Ao que tudo indica, o episódio é uma reunião de muitos dos males produzidos pelas big techs em um momento em que se discute a aprovação do PL das Fake News, projeto de lei que exige responsabilização das plataformas digitais pela divulgação de notícias falsas e também discursos de ódio.

Uma dessas plataformas serviu como vitrine dos comentários odiosos postados pelo atropelador ainda em cena.

As mensagens não deixam dúvidas: trata-se de uma pessoa cujo cérebro foi fritado no calor de uma guerra que não se restringe às caixas de comentários.

Foi-se o tempo em que avatares anônimos surgiam aos montes em fóruns e postagens abertas com mensagens de ódio, incitação à violência e sugestões extremas sobre combate à criminalidade (geralmente, com a aplicação de um crime pior do que o cometido por qualquer acusado sem direito a se defender ou ser julgado).

Christopher Rodrigues era uma caixa de comentários que saltou para a vida real.

Em suas redes, ele se gabou por ter atropelado um "vagabundo" e "ladrão de celular". "(É) ladrão, foda-se", sentenciou.

As postagens deixam clara a ausência total de compreensão do conceito de "direitos humanos", que há décadas tem sido distorcido em discussões criminosas em redes sociais e que ele diz ter sido usado por testemunhas do atropelamento.

"Lucifer Morningstar recebeu mais um membro da equipe. [...] Agora eu vou para a delegacia assinar um assassinato. Mentira. Deus é mais", disse.

Em outro vídeo, o atropelador mostra que, se pudesse, lançaria para debaixo de seu automóvel qualquer pessoa que tenha escolhido outro candidato que não o dele nas últimas eleições presidenciais. O desejo ficou evidente quando ele diz que não haveria cervejinha ou picanha para o jovem atropelado. Era uma clara referência a uma fala do então candidato Lula (PT) em 2022.

Aparentemente a mesma indignação contra um suposto furto cometido numa das muitas esquinas mal vigiadas das cidades não é observada quando alguém tenta embolsar estojos repletos de joias árabes. Menos mal. Caso contrário, haveria uma epidemia de motoristas desgovernados em aeroportos do país.

O fato é que, após o atropelamento, o motorista encontrou a via livre em uma rede social para falar tudo o que falou. Ele sabia que receberia aplausos e obteria engajamento que jamais supôs atingir se postasse um poema em suas páginas.

São as mesmas redes que querem se eximir agora da responsabilidade pelo fato de pessoas assim identificarem em suas plataformas um terreno propício para modelar, alimentar e desovar sua perversidade.

Pudera: foi certamente nessas redes que ele recebeu todos os insumos para adubar seu ódio, a alavanca de impulsionamentos, engajamentos e lucros gerenciados sem qualquer transparência pelos algoritmos dos gigantes do Vale do Silício.

Não é mero detalhe que o suposto assassino (sim, aqui esperamos o pronunciamento da Justiça para apontar culpados e sentenças) trabalhasse em outra big tech, dessas que terceirizam o serviço sem se responsabilizar nem pelo empregado nem pelo discurso que vocifera, menos ainda pelas pessoas que seu ódio atropela.

No filme "Aranha", do diretor chileno Andrés Wood, um motorista testemunha um furto no centro da cidade e prensa o ladrão entre a parede e a frente do automóvel após uma longa perseguição. É aplaudido e detido sob protesto de testemunhas da barbárie. Não sabiam que aplaudiam um criminoso serial escondido por trás da capa e a espada de justiceiro.

Nessas horas é difícil não se lembrar de uma tirinha da Mafalda quando a personagem do cartunista Quino é perguntada se só ficariam os bons se matássemos todos os bandidos. "Não, ficariam só os assassinos."

No Brasil de 2023, há quem ainda estranhe que monstruosidades postadas aos montes e impunemente nas redes modulem, instiguem e garantam visibilidade para monstruosidades cometidas no asfalto e postadas como louros pelo motorista de app.

Um sinal evidente de que a limitação moral é o efeito social mais notável da expansão de seus negócios. Chamar a necessidade de regulação mínima de "censura" é só uma das muitas fake news produzidas e/ou destacadas impunemente por lá.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL