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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Big techs devem remunerar jornalismo. Esse debate não pode ficar pra depois

A urgência do PL das Fake News foi aprovada por 238 votos contra 192, e o projeto poderá ser votado na próxima semana. Foto: Pablo Valadares - A urgência do PL das Fake News foi aprovada por 238 votos contra 192, e o projeto poderá ser votado na próxima semana. Foto: Pablo Valadares
A urgência do PL das Fake News foi aprovada por 238 votos contra 192, e o projeto poderá ser votado na próxima semana. Foto: Pablo Valadares Imagem: A urgência do PL das Fake News foi aprovada por 238 votos contra 192, e o projeto poderá ser votado na próxima semana. Foto: Pablo Valadares

Colunista do UOL

09/05/2023 09h38

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Passei parte da infância e início da adolescência surrupiando o caderno de esportes do jornal do meu pai.

De domingo, a negociação era clara: se meu irmão e eu nos comportássemos na missa, ganhávamos um gibi. Com a idade, trocamos os almanaques da Turma da Mônica pela Gazeta Esportiva. E depois o Lance!. E a Placar.

As publicações impressas foram nossa porta de entrada para a paixão pelo futebol e a urgência do jornalismo. Éramos leitores antes de virarmos profissionais.

Meu filho está prestes a completar 10 anos e, à exceção dos álbuns e um ou outro pôster de algum campeão, ele ainda estranha quando vê uma publicação impressa. Até pouco tempo chamava o meu tablet, por onde me informo, de "jornal". Ainda assim, provavelmente sabe mais sobre futebol do que o pai e o tio na idade dele.

A razão para isso são os youtubers especializados em esporte que ele consome em alta velocidade quando volta da escola. Um deles não deve ter 18 anos e acumula milhares de seguidores fazendo listas sobre os maiores campeões de cada estado e a história dos principais times e jogadores do planeta.

Os vídeos são assustadoramente bons. Tem informação, conteúdo, edição, agilidade e imagens — muitas. Só não têm créditos.

Enquanto fala, uma profusão de registros históricos feitos por algum profissional da imprensa povoam a tela. É um almanaque condensado em cinco, seis minutos, baseado no trabalho de alguém, como uma pesquisa de escola em que vamos colando recortes de jornais e revistas para a tarefa de geografia.

A diferença é que, em vez de notas no boletim, produtores de conteúdo como ele ganham clique e dinheiro no fim do mês. Mais do que qualquer fotógrafo de campo que se estropia debaixo do sol para fazer algum registro para a capa do site ou jornal local com os dias contados.

Não é que uma revolução está em curso. Ela já aconteceu. O que temos agora é um impasse, em que plataformas como as de vídeo, adquiridas por grandes conglomerados digitais, as chamadas "big techs", se apropriam do corpo de um hospedeiro que em breve não terá sangue para alimentar ninguém.

O alcance das grandes plataformas, maior do que qualquer jornal um dia sonhou em atingir numa edição caprichada de domingo, alterou a rota da publicidade.

As marcas estão onde a multidão está.

À míngua, o jornalismo profissional, atividade que demanda tempo e recursos, corre o risco de morrer por inanição. Ou virar outra coisa.

Sem conteúdo de qualidade para alimentar canais de vídeo, feeds ou buscadores, as plataformas se tornarão de vez uma estrada aberta para tudo o que não presta: notícias mal checadas, chamadas apelativas, tutoriais para construir o próprio cachimbo de crack e por aí vai.

Mesmo os meninos que ganham fama e seguidores fazendo listas de futebol ficariam sem fonte de onde beber. Só teriam acesso ao que os clubes esportivos dizem ser relevante para sua torcida — nuances, conflitos, críticas, cobertura de crises e outras razões de desconforto produzidas por trabalho de apuração ficariam de fora sem repórteres cobrindo o seu dia a dia.

Agora pensa se essa lógica funcionar também na cobertura dos poderes, das cidades, das finanças, das empresas. Falar diretamente com seu público, sem intermediários que o confrontem, é o sonho de consumo de qualquer autocrata.

Em tese, as plataformas deveriam ser o caminho mais seguro para expor links de notícias bem apuradas, mas na prática elas inviabilizam o trabalho jornalístico porque concentram a maior parte do bolo publicitário. Por isso é tão importante discutir como as "big techs" devem remunerar os serviços de jornalismo acessados por meio de suas páginas.

Esse era um dos pontos principais da chamada PL das Fake News, mas acabou ficando de fora com o fatiamento da discussão principal.

O risco era ficar para o fim da fila, mas aconteceu o contrário: nesta terça-feira (9), está prevista a votação do requerimento de urgência para um outro projeto, de autoria da deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), que regulamenta o pagamento de direitos autorais pelas plataformas. Isso inclui pagamento de produtores de conteúdo cultural e também serviços de notícias, item-chave do processo de fiscalização dos poderes e o equilíbrio do jogo democrático.

Adiada após pressão das plataformas, a PL das Fake News dormita agora à espera de uma definição sobre alguns impasses, como a definição sobre quem determina o que é notícia falsa e o que não é. Há quem anteveja que um conteúdo possa ser derrubado se o julgador, seja quem for, entenda que é errado considerar como um golpe o impeachment de 2016.

Aparentemente, os detratores do projeto não entendem a diferença entre interpretação de fatos históricos e mamadeiras de piroca. Só uma delas não existe, e ainda assim é hoje o maior risco à democracia do país.

Apontar a diferença entre alhos e bugalhos é justamente função da imprensa. A viabilidade do ofício é agora literalmente uma discussão à parte (e mais avançada entre deputados) no combate à desinformação.

Na Austrália, os legisladores locais conseguiram tirar no muque um acordo para que as "big techs" remunerem o trabalho jornalístico.

O Canadá, que perdeu 450 veículos de imprensa nos últimos anos, tentou o mesmo caminho, mas, segundo uma reportagem recente da BBC Brasil, se tornou laboratório de um teste produzido pelo Google para reduzir o alcance de notícias pelas quais deveria pagar a cada clique. Em outras palavras: as notícias foram "escondidas" para reduzir custos.

Naquele país, enquanto rádios, revistas e canais de TV definham, apenas duas empresas abocanham 80% dos US$ 7,1 bilhões gerados em publicidade online em um único ano.

Representantes de empresas como o Google dizem que cobrar por isso é como exigir de um taxista que pague aos restaurantes por levar os clientes até lá. A analogia aqui é não só imprecisa como desonesta. O "taxista" da história, hoje, é quem mais ganha desviando a clientela para restaurantes parceiros, tirando da rota as opções mais confiáveis e privilegiando quem consegue pagar pela preferência — algo que só poderia ser evitado com uma regulação clara do ofício.

Na rota do dinheiro, essas empresas não são mais o meio de transporte, mas o destino principal. Em breve, pode ser o único. E não será um bom lugar para se habitar.