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Nuremberg? Ato falho em áudio golpista diz muito sobre aliados de Bolsonaro

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Quase passou despercebido um detalhe da transcrição da conversa entre o coronel Elcio Franco, militar da ativa, ex-assessor da Casa Civil e ex-número 2 do Ministério da Saúde, e o major reformado Ailton Barros, o "segundo irmão" de Jair Bolsonaro que foi preso na semana passada, sob a suspeita de participar de um esquema para fraudar a carteira de vacinação do ex-presidente.
Na conversa, do fim do ano passado, ambos avaliam as perspectivas para um golpe de Estado no país. O ex-major, que ultimamente trabalhava como advogado, queria convencer o alto comando do Exército a "organizar, desenvolver, instruir e equipar 1.500 homens" numa missão que envolvia a prisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes.
Franco, conhecido por usar um broche na lapela do terno com uma faca e uma caveira, se anima. Mas se queixa da resistência do então comandante do Exército, Marcos Antônio Freire Gomes.
A certa altura, ele imagina o que Freire deveria dizer se tudo saísse errado, como temia o comandante. Simples, pensava Elcio: bastava dizer ao Tribunal de Nuremberg que recebeu ordem por escrito do presidente e não tinha outra saída a não ser cumprir.
"Eu falei, ó, eu, durante o tempo todo [ininteligível] contra o presidente, pô, falei que não, não deveria fazer, que não deveria fazer, que não deveria fazer e pronto. Vai pro Tribunal de Nuremberg desse jeito. Depois que ele me deu a ordem por escrito, eu comandante, da Força, tive que cumprir. Essa é a defesa dele, entendeu?", explicou Franco, que sob Bolsonaro trabalhou diretamente com os ministros generais Eduardo Pazuello e Braga Netto, candidato a vice na chapa do ex-presidente em 2022. Ninguém ali só conhecia Bolsonaro de vista.
O detalhe é que o articulador do golpe não cita Haia, onde fica o tribunal penal internacional responsável por julgamento de crimes contra a humanidade. Cita Nuremberg, cidade alemã onde funcionou a sede do tribunal criado pelos Aliados após a Segunda Guerra para julgar criminosos nazistas.
Segundo a Enciclopédia do Holocausto, os testemunhos apresentados em Nuremberg revelaram grande parte do que se sabe hoje sobre a máquina de mortes de Auschwitz, a destruição do gueto de Varsóvia e a eliminação de seis milhões de vítimas entre os judeus.
Foi em outro tribunal, em Jerusalém, que um obediente funcionário do Reich chamado Adolf Eichmann, autoridade responsável pela deportação de judeus para campos de extermínio durante o Holocausto, se defendeu com um argumento parecido com o ensaiado pelo ex-número 2 da Saúde: fez tudo o que fez apenas porque cumpria ordens.
A referência implícita ao caso Eichmann, cuja performance em seu julgamento levou a filósofa Hannah Arendt a cunhar o termo "banalidade do mal", deve ser só mais uma das muitas coincidências observadas no núcleo e no entorno de Bolsonaro. Como quando seu então secretário da Cultura imitou o chefe da Propaganda nazista em um pronunciamento em rede nacional. Ou quando seus auxiliares flertavam com grupos supremacistas. Ou o próprio chefe do Executivo posava para fotos com a neta do ministro das Finanças de Adolf Hitler.
Se Freire teve algum dia algum contato com as páginas da História que não as contas no Orvil, o livro secreto da ditadura que inspirou a guerra cultural de Bolsonaro e companhia, ele fez bem em não seguir as ordens de quem, na estrutura militar, deveria ser seu subordinado. Os réus nazistas que apenas acatavam ordens foram todos condenados.
No Brasil, porém, as coisas são mais complexas. Aqui golpe de Estado é tramado no WhatsApp, coronel diz para general o que ele deve fazer e major expulso do Exército segue recebendo pensão, mesmo dizendo que a instituição possui um "comando de merda".
A participação de um militar da ativa, que tem acesso às armas, em uma articulação golpista para seguir trabalhando no governo após a derrota em uma eleição é um dos muitos perigos decorrentes do envolvimento das tropas com a política, que pode (e deve) ser proibido num futuro próximo.
E pensar que o citado general, que tomou posse após Bolsonaro demitir a cúpula das Forças Armadas por falta de alinhamento político, num caso histórico de desmoralização das tropas, achava que constrangedor seria bater continência a Lula (PT) durante a transmissão de cargo.
Mal sabia como era tratado nas conversas privadas entre aliados de um presidente que transformou o governo em um grande grupo de WhatsApp.
Em seus tempos de deputado, Bolsonaro prometia que se um dia chegasse à Presidência daria um golpe no dia seguinte. Dizia também que as coisas no país só mudariam com uma guerra civil. Não é de se estranhar que, após atacar como podia e não podia todas as instituições que barraram suas pretensões a autocrata, seus amigos e auxiliares diretos tramassem uma intentona até o último minuto de sua gestão. Questão de afinidade.
"Se for preciso, vai ser fora das quatro linhas", disse o major ao tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, hoje preso, em outra conversa de zap em mãos da Polícia Federal.
Quando foi eleito presidente, Bolsonaro prometeu seguir o "exemplo do patrono do Exército brasileiro, Duque de Caxias".
Uma vez empossado, promoveu a maior avacalhação institucional já vista no país — inclusive as militares, que tentou cooptar com cargos e recursos durante todo o período.
A recorrente referência ao patrono do Exército em seus pronunciamentos não deixa de ser irônica. Foi em Duque de Caxias (RJ) que, segundo a PF, seus auxiliares se embrenharam para conseguir fraudar sua carteira de vacinação com a ajuda de servidores municipais. A avacalhação foi o único pacto federativo que funcionou em seu governo.
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