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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Escândalo das apostas avança no país onde ninguém sabe onde está a verdade

Em meio à profusão de sites de apostas, jogadores viraram grandes atores - Freepik
Em meio à profusão de sites de apostas, jogadores viraram grandes atores Imagem: Freepik

Colunista do UOL

12/05/2023 04h01

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Pablo Sandoval, personagem de Guillermo Francella em "O Segredo de Seus olhos", vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro em 2010, tem razão quando diz que o sujeito pode mudar de tudo nesta vida ("de cara, de casa, de família, de namorada, religião, de Deus"), mas não pode "trocar de paixão".

Ele falava da relação de um dos personagens pelo Racing Club, time argentino que se torna peça-chave para a resolução de um crime no longa de Juan José Campanella. Poderia ser sobre qualquer equipe.

Sim, a paixão não muda. Nem mesmo com a idade. Mas há um momento em que alguma coisa se inverte na relação time-torcida. Em geral, quando nos apaixonamos pelo esporte, somos crianças e os atletas, adultos. Muitos com a idade dos nossos pais.

Quando eles estão em campo, eles são os homens (ou mulheres) responsáveis por cuidar daquilo que mais amamos. E uma marca da infância é acreditar que os adultos sabem alguma coisa do que estão fazendo, seja quando pegam o volante, seja quando um atleta domina a bola e tem um campo inteiro tomado de adversários pela frente. Ao menos acreditamos que eles não vão se colocar nem nos colocar em perigo.

A certa altura da vida a relação é oposta. Com 40 anos, ainda tenho dificuldade em olhar para o campo e ver que a gestão dos meus afetos mais irracionais está nas mãos (na verdade, nos pés), de meninos de 18, 20, 20 e poucos anos. (Meu time, por exemplo, tem entre os destaques um adolescente de 16). Em pouco tempo não será um exagero dizer que meus heróis têm idade para serem meus filhos.

Não importa: quando a bola rola, volto a ser o menino de 12 anos que confia nos adultos de chuteiras. E eles são responsáveis por administrar uma dimensão que se abre toda vez que vestimos, juntos, a camisa do mesmo time.

A confiança vai além das incondicionalidades de uma abstração. Como a música, o futebol me conecta com quem fui um dia. E também com meus amigos e familiares. Com os avós que eu conheci e com os bisavós que não conheci. E também com quem já morreu.

Me conecta sobretudo às memórias dos dias e noites em que fui feliz e sabia ao fim de cada título.

Por alguma razão, mesmo que cresça, a gente segue acreditando, se não na infalibilidade dos atletas, ao menos numa relação estabelecida por uma verdade, subentendida na promessa de respeito (e amor, se possível, embora não obrigatoriamente) pela instituição que representam.

Por isso não é outra a sensação que não a de desamparo ao saber que alguém a vestir a mesma camisa está em campo disposto a performar uma simulação: a raiva punida com cartão, uma queixa excessiva, uma entrada mais dura, um pênalti cometido por aparente imprudência, uma bola mandada para a lateral.

Nas últimas horas, inúmeros atletas foram afastados das atividades de seus clubes por suspeita de envolvimento em esquemas de manipulação de jogos. As decisões se assemelham aos tempos da pandemia, quando as equipes iam a público informar que algum jogador precisou ser afastado por contaminação.

O que até então eram casos isolados em jogos de divisões inferiores, sem tanta visibilidade, tantos torcedores e, consequentemente, sem tantas paixões envolvidas, hoje escalou até a primeira divisão.

Chegou, por exemplo, ao zagueiro Eduardo Bauermann, titular do Santos que se endividou e entrou na mira de bandidos por não conseguir cumprir o combinado: ser advertido em uma partida e expulso, em outra.

Pois é. "Promessa" e "aposta" já não são sinônimos de jovens e promissores atletas. E a orientação do que devem ou não fazer em campo não é mais monopólio de treinadores.

Ao todo, 15 jogadores foram indiciados pela Justiça de Goiás após investigações policiais sobre manipulação em partidas das Séries A e B do Campeonato Brasileiro de 2022. (Teria o esquema ficado só no ano passado?) Outros nove atletas estão afastados preventivamente por seus clubes. O viés é de alta.

Neste instante, não tem torcedor que não se questione se no elenco de seu time não estará também alguém mais preocupado em premiar apostadores do que em jogar bola.

O desamparo é uma via de mão dupla.

Quem cresceu sob o encanto de duplas como Bebeto e Romário hoje se desaponta ao ver como seus ídolos envelheceram mal em meio a picuinhas, arrogância e mesquinhez política.

Pior ainda é descobrir que os possíveis ídolos do presente podem prejudicar seus times para engordar os bolsos de apostadores.

O escândalo das apostas está quebrando aos poucos as paredes de um espetáculo que, diferentemente do cinema e do teatro, se move justamente pela relação de confiança de que tudo o que acontece no palco (no caso, o campo e suas extensões) é real.

"Tudo o que quero é a verdade. Apenas me dê um pouco da verdade", implorava John Lennon na música "Gimme Some Truth".

Num mundo de aparências falsificadas pelas verdades editadas dos meios digitais, o esporte ainda era uma espécie de refúgio de quem já trocou de tudo, menos de paixão. Não importava se o resultado em campo era trágico, cômico ou épico, desde que fosse real tanto quanto uma dor.

Agora até chute para fora é alvo de desconfiança. Quanto valeu? Será apenas uma performance ou simulação? Uma coisa de moleque? Onde estão os adultos da sala?

O que os torcedores exigem agora já nem são títulos ou vitórias. Exigem a verdade. Apenas um pouco da verdade.