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'Mudou minha vida', diz seguidor resgatado de montanha com Pablo Marçal
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Charles Nigel, 36, era uma das 16 mil pessoas na plateia do "Chamado dos Generais", evento promovido em dezembro de 2021 por Pablo Marçal em Goiânia junto a influentes lideranças evangélicas do país. O encontro ganhou repercussão após o influencer goiano tentar fazer uma mulher sair da cadeira de rodas e andar. Não deu certo.
Tocado por uma fala em que era chamado a esquecer os erros do passado, o empresário paulistano saiu de lá disposto a se reconciliar com o pai, com quem mal falava havia anos, e cumprir as tarefas de uma mentoria oferecida pelo autointitulado coach*. A mentoria prometia fazer sua vida avançar dez anos em apenas um.
No domingo, 2 de janeiro, poucos dias depois do megaevento, já de volta a São Paulo, Charles recebeu um telefonema perguntando se estava disposto a escalar uma montanha com a equipe de Marçal. Se estivesse, deveria se apresentar no dia seguinte na sede das empresas de Marçal, em Alphaville, e fazer um teste físico — um circuito de exercícios que lembravam um treino de CrossFit.
Charles foi um dos cerca de 30 seguidores aprovados no teste, mas mal teve tempo para comemorar: os escolhidos receberam ali mesmo uma lista de equipamentos que deveriam levar na viagem, que aconteceria no fim da tarde daquele dia. O empresário só tinha a roupa do corpo.
Na companhia de novos amigos, que acabara de conhecer ali, ele ganhou um lugar para almoçar e uma carona até uma loja de equipamentos esportivos de Osasco (SP), onde parcelou a compra de materiais como colchonete, botas e meias especiais. Embora não tivesse a própria barraca, estava pronto para a empreitada.
Fazia sol em Alphaville e, àquela altura, ele e os parceiros de aventura mal imaginavam o que encontrariam na Serra da Mantiqueira, onde ficava a tal montanha, o Pico dos Marins: chuva, névoa, frio e fortes rajadas de vento.
Após viajarem por mais de cinco horas pela madrugada, eles se dirigiram até um alojamento onde só havia chuveiro de água gelada. Charles então percebeu a primeira utilidade de uma mudança de hábitos proposta por Marçal em suas primeiras palestras: os banhos gelados. A ideia era que os mentorados aprendessem a lidar com situações extremas e encarar decisões difíceis.
Entre aprovados no teste e a equipe de Marçal, cerca de 60 pessoas, divididas em grupos de 15, iniciaram a subida na manhã do dia 4. Charles estava na primeira equipe; Pablo, na última.
Tudo corria relativamente bem até que o grupo de Charles atravessou uma área descampada, logo após o Morro do Careca, conhecido ponto de encontro da região, e teve de enfrentar ventos de até 100 km/h. "Não tinha árvore para proteger do vento. A chuva ficou mais forte também. A gente tinha que inclinar o corpo e ficar com as pernas abertas para não cair durante a subida."
Precisou cair o mundo para que um dos instrutores avisasse que, devido às condições climáticas, talvez fosse melhor voltar. Charles bateu o pé. Disse que queria ir até o fim, mas foi vencido por uma votação improvisada ali mesmo.
Foi quando os integrantes de sua turma começaram a descer.
Até ali, Charles ainda não havia visto o responsável pela incursão.
"Fui descendo meio bicudo. No caminho, depois de mais de uma hora de caminhada, vi um rapaz subindo. Perguntei se alguém mais iria subir e ele respondeu: 'Você não conhece o Pablo, né?".
Já era tarde quando o coach apareceu junto com sua equipe e percebeu a hesitação do seguidor. "Você tem que parar de escutar gente fraca que só pensa pra baixo. Tem que escutar quem te leva pra cima. Eu tô subindo", disse Marçal, pouco antes de se perder na neblina..
"Nunca mais me esqueci daquilo", conta Charles, 15 meses depois. "Ele subiu e foi embora. Eu estava com a mochila de outra pessoa e decidi deixar lá. Aprendi que nunca mais iria carregar o que não fosse meu. Não tinha ido até lá para desistir e voltei a subir com algumas outras pessoas, tentando alcançar o grupo do Pablo, que andava mais rápido e foi o único a escalar um último paredão e alcançar o pico."
O grupo de Charles ficou a poucos metros do fim — para sua decepção. Numa área de mato e muitas pedras, a ordem dos instrutores era para que as pessoas não se separassem nem saíssem da barraca durante a noite. O risco era morrer de frio.
O empresário foi acolhido na barraca de um recém-conhecido. Um jantar à base de miojo e outros alimentos foi preparado por quem havia levado botijão.
Charles, que desenvolveu sono leve nos tempos em que trabalhava como segurança, mal conseguiu dormir por causa da umidade, do frio e do vento, que fazia a lona da barraca encharcada bater em seu rosco. Um dos poucos rádios usados para o grupo se comunicar com a base ficou sem energia a certa altura. Também não havia sinal de celular. O companheiro de "quarto" só roncava.
Pela manhã, mal o dia havia clareado e o ex-segurança se deparou com uma equipe de bombeiros, chamada para auxiliar na descida. "Fiquei mais tranquilo, mas dava para descer sozinho. Pelo que entendi, foi a equipe do Pablo, lá no alto, que não conseguia descer sozinha."
A falta de equipamentos adequados foi observada pelos responsáveis pelo resgate em um boletim de ocorrência.
Entre os aventureiros houve quem tivesse subido com tênis, que acabaram se rasgando. "Minha bota me salvou", conta Charles.
A empreitada, garante ele, que se diz acostumado a correr riscos, não foi exatamente traumática.
Dias atrás, Charles se reuniu com os amigos de escalada num churrasco para relembrar as histórias da subida frustrada da montanha. Eles se comunicam até hoje em um grupo de WhatsApp chamado "Generais do topo".
"Generais" é como são chamados os seguidores de Marçal. "Titi" (diminutivo de "tio", sinônimo de "professor"), é como eles o chamam.
Charles, que ainda acompanha religiosamente as mentorias do influencer, voltou ao Pico dos Marins naquele mesmo ano para terminar o que começou em janeiro. "O Pablo diz que quando você começa uma coisa e não termina, sua alma fica gritando com você. E eu deixei de ser uma pessoa que começava as coisas e não terminava", diz.
A história rendeu um livro, publicado como e-book, chamado "Siga em frente".
Na mesma época, o autor abriu com a companheira uma imobiliária que tem no nome uma homenagem indireta ao seu mentor: "Boot imóveis". O termo, que remete à inicialização forçada de um computador, é usado com frequência nas palestras de Marçal, que após a empreitada quis se reunir com os sobreviventes em sua sede em Alphaville para ouvir os seus depoimentos.
Para Charles, o contato com a turma do milionário foi uma chance de sugerir a um dos sócios do influencer uma parceria com sua imobiliária. "Networking", aprendeu ele nas mentorias, é um dos segredos do sucesso.
Seu livro, que ele evita chamar de autoajuda, é de certa forma um testemunho. "Aquela viagem a Goiás mudou minha vida. Não teria subido a montanha nem mudado tanta coisa", diz o autor, que atribui às mentorias de Marçal o "desbloqueio" de impasses profissionais e afetivos que o levaram a sair de casa aos 18 anos e se envolver com álcool e drogas, além de uma série de relacionamentos problemáticos.
O relato lembra o de um paciente ao fim da terapia. "Fui trabalhar como segurança muito cedo. Hoje entendo que, como não tinha quem cuidasse de mim, busquei dar segurança para os outros", reflete.
"Agora tudo o que eu faço eu termino, independente se é no trabalho ou não. Mesmo que eu esteja cansado. Passei a ler mais a Bíblia. Tenho o hábito de acordar cedo, ler os livros das mentorias, assisto aos filmes que eles indicam. E me distanciei de muita coisa. Você deixa de ir pra balada e se esforça mais."
Segundo ele, a maioria das pessoas com quem conversa lamenta não ter terminado a escalada e sente vontade de subir o pico até o fim, mas em condições melhores.
Ele acredita que os problemas da aventura só repercutiram porque foram liderados por alguém famoso. "As pessoas sobem sempre o Pico dos Marins. E nem sempre em condições adequadas de segurança. No nosso caso, foi um risco, sim, mas um risco que todo mundo assumiu, inclusive assinando um termo de responsabilidade. Ninguém me obrigou."
Responsável pelo resgate, o capitão dos Bombeiros Paulo Roberto Reis afirmou, em entrevista à época, que o líder da turma foi "totalmente irresponsável" na empreitada. "Subir com um grupo de pessoas despreparadas e sem equipamento é colocá-las sob risco de morte. Essa foi a pior ação que a gente já viu no Pico dos Marins."
O caso rendeu a Marçal um processo por tentativa de homicídio privilegiado. O inquérito quase foi arquivado, a pedido da Polícia Civil, mas segue em fase de investigação após o Ministério Público pedir novas diligências. Em nota, a defesa de Marçal afirma que colabora com todas as investigações, "manejando inclusive os recursos jurídicos cabíveis para ver logo encerrado esse caso".
Em vídeo recente, o influencer citou brevemente o episódio. "Ninguém se machucou e essas pessoas tiveram uma das melhores experiências de vida. Eu aprendi muito com isso." Marçal, que pouco fala com a imprensa, não atendeu aos pedidos de entrevista da reportagem.
Desde a escalada, ele viu dobrar o número de seguidores em seu Instagram e segue lotando ginásios em eventos promovidos para "desbloquear" as mentes de postulantes a milionários. Hoje, o coach está proibido de voltar ao Pico dos Marins sem autorização da Defesa Civil.
*Em contato com a coluna, a International Coaching Federation Brasil, associação responsável pela certificação de profissionais que atuam na área, chama a atenção para a banalização do uso do termo e da profissão. "A ICF Brasil recomenda cuidado ao atribuir a pessoas sem qualificação a função de coach, de modo que a prática prejudica toda uma classe de profissionais sérios e éticos que trabalham com o processo de coaching." Fica aqui o registro.
(Colaborou Ranieri Costa)
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