Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Como dialogar com 'patriotas' que hostilizam autoridades até em aeroportos?
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Sou de um tempo em que o brasileiro se importava e tinha na ponta da língua a escalação da seleção brasileira. Titulares e reservas.
Se um atleta se sentasse na poltrona ao lado de um possível torcedor (e todo mundo era torcedor), corria o risco de passar todas as horas do voo ouvindo queixas, cobranças e/ou orientações táticas de um especialista formado em leitura de caderno esportivo. Corria também risco de agressão a depender dos últimos resultados do time.
Hoje duvido, por exemplo, que o zagueiro Ibañez, atleta da Roma presente na última convocação do escrete canarinho, fosse sequer reconhecido por um compatriota que estivesse no mesmo voo em direção ao seu país.
Pior: se ele estivesse na mesma fileira de um ministro do Supremo Tribunal Federal, todas as atenções estariam voltadas ao magistrado.
Como muito já se disse por aí, algo de estranho aconteceu, de uns anos para cá, no Brasil. No país do futebol é mais fácil escalar os 11 ministros do Supremo do que os 11 titulares da seleção.
Sinal dos tempos, em que uns perderam a relevância e outros caíram literalmente na boca do povo.
Numerólogos dirão que tudo se inverteu depois dos 7 a 1 de 2014.
De fato, naquele ano da fatídica sapecada, o Brasil vivia um momento-chave. Enquanto os comandados de Luiz Felipe Scolari cansavam de buscar a bola no fundo das redes, corria país afora um mantra quase uníssono a respeito da crise que já assombrava a chamada política institucional.
Desde as manifestações de 2013, todos os caminhos levavam não a Roma, mas a uma sentença onipresente que não demoraria a se converter em clichê: "É preciso ouvir a voz das ruas."
Havia um imperativo escondido na sentença. Significava que as autoridades deveriam sair de seus supostos castelos e ouvir os especialistas em qualquer assunto de rede social.
Um dos defensores da medida, aparentemente simples de ser aplicada, era o então juiz Sergio Moro. Homenageado em uma manifestação de Curitiba (PR) em 2016, onde milhares de pessoas foram às ruas vestindo uma máscara com o seu rosto, Moro agradeceu o apoio e, do alto do pedestal, ensinou: "Importante (é) que as autoridades eleitas e os partidos ouçam a voz das ruas."
Nossa, como ninguém pensou nisso antes?
Moro, por anos, foi a representação mais bem acabada de um tipo de autoridade que mede o pulso da opinião pública (ou publicada) antes de tomar uma decisão. De decisão em decisão, chegamos a Jair Bolsonaro (PL), a quem ele serviu e ainda serve, agora como senador.
Numa corrida de tiro curto, enquanto os chamados partidos tradicionais se reorganizavam, ganhava vantagem quem performava ter mais sintonia com os apelos populares. Era a receita pronta do populismo mais barato, aquele que oferece receitas simples para problemas complexos e se diz guiado pelo povo, que não reconhece a mediação de uma elite dita corrompida, dos meios de comunicação ao Judiciário, que precisa ser implodido.
No último fim de semana, o ministro Alexandre de Moraes e seu filho foram agredidos, no aeroporto de Roma, por uma família de brasileiros que quis mostrar no tapa seu nível de descontentamento com seu trabalho no STF. Ele foi chamado de "bandido, comunista e comprado". O filho do magistrado teria sido agredido fisicamente no entrevero.
A "voz das ruas", quem diria, virou risco de agressão até contra ministros do Supremo — e eles agora correm o risco de serem presos no Brasil. Como chegamos até aqui?
Nos últimos anos, o Judiciário foi tensionado e chamado a se manifestar toda vez que um líder populista cruzava a linha da legalidade para botar em prática o que jurava ser seu monopólio: a compreensão do desejo popular. E toda vez que o líder populista é obrigado a recuar, ele aponta suas armas para seu algoz e as instituições, que ele chama de censores. Faz isso, geralmente, roubando a carteira de eleitores e chamando todo mundo de ladrão.
Para não serem esmagados, e à medida que crescia o interesse (e a revolta) por suas decisões, magistrados passaram a dar as caras, um tanto por vaidade e outro tanto por necessidade, em eventos diversos em busca de apoio e visibilidade. Não tinha como dar certo.
Quem resumiu a encrenca que hoje explode foi o jurista Lenio Luiz Streck. Em um artigo publicado no ConJur em abril de 2018, ele dizia que a comunidade jurídica passava por uma "insolvência epistêmica" e fracassava sem conseguir contrapor uma coisa óbvia ao dualismo em curso: Constituição é remédio contra a maioria e, entre atender a "voz das ruas" e da Constituição, valia mais o ronco desta. "Se for verdade que o Judiciário (em especial, o STF) deve ouvir a voz das ruas e até existir pesquisas indicando isso, temos a seguinte questão. Se a tese é boa, é ruim. Por uma simples razão: se a voz das ruas pode ser mensurada e deve ser levada em conta, já não precisa(re)mos do Judiciário."
Streck dizia temer que a Constituição morresse de "overdose de ativismo, dualismo, pamprincipiologismo, hiperrealismos e outros ismos, como o neoconstitucionalismo".
Veja: não significa que tudo voltará às mil maravilhas se o cidadão hoje atolado de opiniões formadas sobre tudo, inclusive sobre as sentenças de especialistas, voltar ao sono profundo da alienação entretida no sofá com um bom jogo de futebol.
Acontece que a alienação segue acordadíssima no país; suas vítimas, enfastiadas de meia dúzia de frases-feitas aprendidas no WhatsApp, é que não sabem disso.
Chamar um ministro do STF de "comunista" por ele ter freado, com a lei, as aventuras golpistas dos ídolos da turma manipulada, é sinal disso.
Na mão de patriotas do tipo o Brasil já teria virado um grande deserto.
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