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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Vila Baiana: em comunidades 'irmãs', quem não morre na chuva morre na bala

Marca em muro na Vila Baiana, no Guarujá, após chacina - Herculano Barreto Filho/UOL
Marca em muro na Vila Baiana, no Guarujá, após chacina Imagem: Herculano Barreto Filho/UOL

Colunista do UOL

02/08/2023 04h01

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Em linha reta, pouco mais de 87 km separam a Vila Baiana, no Guarujá, da antiga Vila Baiana, hoje rebatizada como Vila Sahy, em São Sebastião.

Os nomes das comunidades enunciam a origem dos moradores e o processo de ocupação de duas áreas de risco do litoral paulista.

A de São Sebastião surgiu na década de 1990 e fazia referência aos imigrantes que saíram da Bahia e outros estados do Nordeste em busca de oportunidade de trabalho. Hoje habitada por funcionários de casas de veraneio, hotéis e pousadas da Barra do Sahy, a parte nobre da cidade, do outro lado da rodovia Rio-Santos, o bairro concentrou a maioria das 53 mortes registradas no início deste ano em decorrência das chuvas no litoral norte.

O que alguns chamavam tragédia natural tinha (tem) digitais humanas por todos os lados.

No município, segundo o atual prefeito, pelo menos 400 casas populares deixaram de ser construídas nos últimos cinco anos em razão da oposição de moradores mobilizados de condomínios de luxo e donos de hotéis. Era a chance que a força de trabalho formada pelos imigrantes de estados do Nordeste saírem de áreas sob risco de enchentes e deslizamentos. Mas seus contratantes se mobilizaram para impedir as construções sob a alegação de que não havia estrutura adequada para todos. Seus contratados seguiram empurrados em direção aos morros à espera de uma misericórdia divina que, em dias de chuva, só alcança os vizinhos ricos.

Na Vila Baiana do Guarujá, que manteve o nome ao longo da ocupação, tragédias ditas naturais também são recorrentes.

Em março do ano passado, 29 pessoas precisaram deixar suas casas em meio às fortes chuvas que atingiram a Baixada Santista. Um grande deslizamento derrubou uma árvore e danificou a estrutura de uma residência. Um morro ficou totalmente destruído. Na ocasião, ninguém morreu — mas também não recebeu ajuda, segundo os próprios moradores.

Permanecer em suas casas, em qualquer uma das comunidades, é um risco em dias de precipitação pluviométrica.

Mas, na Vila Baiana do Guarujá, sair é que se tornou um perigo após um tiro ser disparado, segundo as investigações, de um bunker do PCC perto dali, na Vila Zilda, e matar um policial em serviço.

Como vingança, incursões policiais pela periferia do Guarujá deixaram um rastro de mortes com indícios de execução.

O repórter Herculano Barreto Filho relata um cenário de sangue e medo, impresso até nas paredes do local. Foi lá que um vendedor ambulante de 30 anos foi, segundo testemunhas, torturado e assassinado por policiais da Rota após sair para comprar cigarros.

De acordo com a Ouvidoria da Polícia Militar, ao menos 19 mortes estão sob investigação.

O governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) se apressou em parabenizar a ação. Falando com sua base eleitoral, ele chamou os questionamentos sobre os excessos policiais de "narrativas".

Naquela vila, o tempo entre a acusação, o julgamento e o cumprimento de uma sentença que não existe na Constituição, a pena de morte, durou, para os suspeitos, a viagem de um tiro — ou quantos tenham sido disparados em corpos e territórios criminalizados muito antes, quando seus antepassados e familiares se fixaram no local e passaram a andar com um grande alvo em suas costas de pele escura.

A chacina é a resposta validada por grupos políticos que veem a morte como solução, nunca como problema. Foi assim na pandemia, quando corpos vulneráveis e sem histórico de atleta foram descartados já no discurso oficial dos que definem quem tem ou não direito à vida, e é assim toda vez que o Estado sobe o morro para pacificar coisa nenhuma. (Ou alguém está mais seguro depois de chacinas do tipo em Osasco, na Vila Cruzeiro, no Rio?).

Como acontece em casos de deslizamento, a única narrativa que toma forma nessas horas é a que tenta nomear as execuções em série como um resultado da ordem natural da vida e das leis da física baseadas em ação e reação.

Em seus tempos de governador, o hoje vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB) assim se manifestou após uma chacina do tipo em Várzea Paulista (SP): "Quem não reagiu está vivo".

Dependendo da vila onde se nasce, tudo o que se move é passível de execução.

As vítimas são as mesmas de sempre. Elas foram condenadas à morte antes de nascer e viver, empurradas em direção ao morro e encostas, nas muitas vilas baianas que se espalham pelo país.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL