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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Arquiteto expõe ex-chefe que pediu serviço após demissão. E tá errado?

Getty Images
Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

11/08/2023 04h00

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Um arquiteto viralizou no último dia 7 ao publicar no Twitter o print de uma conversa em que um antigo chefe cobra dele a entrega, prometida para o dia seguinte, de um projeto contratado por uma construtora.

A resposta do profissional, identificado como Luiz, virou um hit das redes sociais: "Não entendo como isso pode ser problema meu. Você me demitiu semana passada, não lembra? Então não é mais minha responsabilidade".

Ele continuou: "O projeto que fiz foi no meu computador, já que nem isso você me proporcionou. No momento em que você rompeu o contrato, eu deixei de ter qualquer obrigação com você ou com sua empresa. Boa noite".

Em 58 palavras, a resposta malcriada resumiu melhor as relações de trabalho contemporâneas do que todas as edições da revista Você S/A.

Ela indica que havia, entre eles, um vínculo de trabalho tão frágil quanto a autoestima de um jovem. Uma empresa, afinal, contratou um trabalhador terceirizado para uma atividade-fim sem oferecer a ele sequer equipamento adequado. O projeto foi desenvolvido em um computador particular.

Esse tipo de precariedade foi vendida, na reforma trabalhista aprovada sob o governo Michel Temer, em 2017, como uma chance incrível para expansão de negócios e oportunidades.

A mensagem do contratante, porém, mostra que não é preciso oferecer um contrato de trabalho via CLT para manter intacta uma hierarquia dos tempos pré-Getúlio Vargas. Sem uma fronteira clara sobre começo e fim de expediente, ela leva o patrão a tratar alguém, via WhatsApp, como subordinado mesmo depois da demissão.

A resposta do arquiteto demitido diz muito sobre a capacidade gerencial do empresário brasileiro médio: uma regra básica dos manuais de gestão deveria deixar claro que, se há um projeto a ser entregue a um cliente, é bom não demitir o responsável pelo trabalho uma semana antes.

Mas mostra também que, sem os vínculos trabalhistas de antes, já não nos assombram os fantasmas que falavam da importância de vestir a camisa, entregar mais do que o combinado, virar noite, fim de semana, desdenhar de sindicato, do direito a hora extra para, no fim, deixar a porta aberta por onde passarmos. Isso incluía aceitar ordem após a demissão para que o beneficiado não saísse por aí nos queimando em outras praças — praças que não pensariam duas vezes em encerrar o contrato e deixar seus profissionais ao relento de qualquer direito trabalhista.

A postura era algo impensável há não muito tempo.

Meus pais costumam dizer que seus avós sempre ensinaram que o melhor plano de carreira era amarrar o burro na sombra, garantir estabilidade e uma boa aposentadoria. Mesmo que mínima. O maior orgulho dos meus dois avôs era contar as décadas dedicadas a uma mesma empresa ferroviária. Um deles passou a vida apertando parafuso na linha férrea. E só saía de sua cidade quando viajava, a trabalho, para a última estação. Dentro desses limites, abusos eram reproduzidos e absorvidos porque a estabilidade era um valor e o trabalho duro, um orgulho, e a noção de direitos ainda engatinhava. Era aquilo ou a miséria.

Era um outro mundo, que acabava exatamente numa linha de trem. A ideia entre trabalho e família se confundia porque praticamente todo mundo trabalhava ou frequentava o mesmo lugar: a sede de campo da associação dos funcionários era onde passávamos os finais de semana, praticávamos esportes e comemorávamos aniversários.

A geração seguinte transformou a relação com as empresas, em um país já modernizado, em relações de mutualismo, aquela definição da biologia em que espécies diferentes vivem associadas, não exatamente dependentes, para benefício mútuo. Todos eram felizes até que a crise ou alguma proposta melhor de trabalho os separasse.

Hoje as possibilidades são muitas e as oportunidades, poucas. Na lista de predicados exigidos a um bom profissional, fica difícil vestir a camisa, ser proativo, sugerir soluções para a corporação quando o vínculo tem hora para acabar. Ninguém se sente parte da família namorando por apenas duas semanas e alguns contos de réis.

O Luiz da história acima não tem sobrenome. Ele não é o Luiz da empresa X. Ele é um avatar da Taylor Swift em um perfil criado para divulgar notícias da estrela pop norte-americana.

E é resultado de uma época em que o anonimato o protege e permite expor problemas particulares em praça pública.

Pelas preferências musicais, é possível dizer que Luiz não é um velho senhor que pegou o FGTS, botou a sunga e foi curtir as férias na casa de praia. Ele provavelmente é jovem e ainda mora com os pais. (Quem é que consegue financiar a casa própria sem holerite para mostrar a saúde financeira para o banco? Nem o jovem arquiteto subcontratado poderia.)

O pragmatismo com que resolveu a situação ("sem contrato, sem trabalho") aponta que trabalho já não é considerado uma missão pelas novas gerações, mas uma prestação de serviço e ponto.

Mas a precariedade e a fragilidade do vínculo (ou seja, com menos investimento em formação, regras claras, manuais de conduta, acesso ao compliance etc) criam esferas confusas em que mesmo o empregador mais justo e bem intencionado tem dificuldade de lidar com quem parece não saber o que é cobrança normal e o que é assédio em um ambiente corporativo. Ou será que sabem tanto que já não aceitam mais por menos?

Uma série de mensagens de leitores compartilhadas pelo jornalista Chico Felitti em seu Instagram, dias atrás, serve como exemplo desse embate geracional entre empregadores e novos profissionais.

Um deles se recusava a imprimir papel para não prejudicar o planeta. Detalhe: ele trabalhava em um cartório.

Outro exigia auxílio pet para sair do home office.

Outra meteu um atestado de depressão após terminar um namoro e foi curtir a vida na praia.

Quem já está na estrada há algum tempo sabe que balões do tipo já eram comuns desde que Caim virou agricultor e Abel foi cuidar do gado. O que mudou é que, com vínculos cada vez mais frágeis, ninguém precisa performar ou jurar amor à camisa para fazer parte do time, geralmente um catado de profissionais dispersos, sem direito ou perspectiva.

Parafraseando a música: e no final, a consideração profissional que você recebe é igual à consideração que você dá.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL