Carnes alternativas ou alternativas à carne?
A Unilever acaba de anunciar que pretende ampliar as vendas de carnes e leite feitos a partir de plantas (plant-based, em inglês) em US$ 1,2 bilhão nos próximos cinco anos. Em 2018 a gigante do varejo global comprou a empresa "The Vegetarian Butcher" (O Açougueiro Vegetariano) que elabora carnes vegetais e expandiu a marca para trinta países, associando-se ao Burger King para vendê-las.
No Vale do Silício, as chamadas carnes alternativas converteram-se em mantra e exprimem o protótipo da solução ganha-ganha: a pressão sobre os ecossistemas derivada da produção de carnes e os prejuízos para a saúde humana decorrentes de seu consumo excessivo são reduzidos, sem que as pessoas tenham que renunciar a um seus mais valorizados prazeres mundanos.
O anúncio é tentador, mas, como sempre quando se trata de soluções que só trazem benefícios, merece ser considerado com ao menos alguma desconfiança.
De fato, o diagnóstico é praticamente unânime: não há como atingir os objetivos estabelecidos no Acordo Climático de Paris de 2015 sem uma profunda alteração no sistema agroalimentar global. Esta alteração ganhou urgência inédita quando os frigoríficos se tornaram, em oito países, epicentros da atual pandemia.
Estão em jogo não apenas a proximidade dos trabalhadores entre si nas instalações industriais, mas as gigantescas concentrações de animais geneticamente homogêneos, ambiente propício à reprodução viral e bacteriana. Além disso, duas outras críticas são habitualmente dirigidas à maneira como nos alimentamos.
A primeira refere-se ao consumo. União Europeia, Estados Unidos, Brasil, Argentina e vários outros países ingerem muito mais carne que o necessário. As mais recentes recomendações contemporâneas apontam para um consumo máximo de carne vermelha, aves e ovos de não mais que 392 gramas por semanas e de 250 gramas diárias de produtos lácteos. Isso é muito menos do que boa parte da população brasileira (e não só os mais ricos) consomem.
A segunda crítica pode ser encontrada num estudo da consultoria global ATKearney: quase metade de toda a área cultivada no mundo volta-se a grãos que se dirigem à alimentação animal. Por mais que a genética tenha melhorado a capacidade de transformar grãos em carnes, há um imenso desperdício nesta conversão. É perfeitamente possível manter os padrões nutricionais de uma vida humana saudável ampliando as proteínas vindas das plantas e reduzindo as que vêm de animais. E isso pode (e deve) ser obtido no quadro de uma dieta diversificada, bem entendido.
Usar menos terra produzindo alimentos para animais é uma forma de reduzir a pressão sobre as florestas, abre mais espaço para fortalecer a biodiversidade e para que o uso do solo contribua para captar carbono.
Este argumento é amplamente usado tanto pelas empresas como pelas consultorias ligadas ao setor, que hoje atrai companhias de alta tecnologia de Israel, da Holanda e, claro, do Vale do Silício. Os investimentos nas carnes vegetais em 2018 foram de US$ 900 milhões. O crescimento tem sido em torno de 20% ao ano.
Uma notícia do Fast Company revela que, em julho deste ano, uma empresa sueca obteve investimentos de US$ 200 milhões para a produção de leite de aveia. E para quem acha que a carne obtida a partir de células num biorreator é sonho longínquo, é importante saber que Memphis Meats conseguiu, em 2020, investimentos de US$ 186 milhões. Uma empresa israelense anuncia que o bife de laboratório estará em restaurantes europeus, asiáticos e norte-americanos ano que vem e nos supermercados em 2023.
O recém-publicado relatório da Organização Internacional do Trabalho sobre o mercado de trabalho numa economia de emissões zero na América Latina incorpora o declínio na produção convencional de carnes como um dos componentes centrais da descarbonização do Continente. O relatório preconiza que dois terços do consumo de proteínas animais sejam substituídos por proteínas vegetais.
Mas em que esta substituição deve consistir?
Marion Nestle, uma das mais respeitadas pesquisadoras sobre a alimentação contemporânea, acaba de publicar um livro com um curto capítulo sobre o tema. Por um lado, ela reconhece a urgência de que se reduza o consumo de carnes.
Ao mesmo, entretanto, até aqui, a carne vegetal faz parte do rol daquilo que os especialistas chamam de alimentos ultraprocessados. Em outras palavras, ela possui ingredientes que não pertencem à cozinha cotidiana e sobre os quais os consumidores não têm conhecimento. Rita Lobo explica bem o problema nesta entrevista.
Além disso, a carne vegetal, nem de longe, cumpre a meta de ampliar a diversidade das dietas contemporâneas: ervilha, soja, trigo e canola são seus principais ingredientes, aos quais são adicionados componentes químicos que dão sabor, textura, aroma e aparência de carne. A roupagem de sustentabilidade que a carne vegetal hoje ostenta esconde um conteúdo de monotonia, que no fim das contas acaba por mimetizar o modelo atual.
Se o objetivo é comer menos carne, por que não adotar métodos de criação mais humanos, respeitosos do meio ambiente, da dignidade animal e que dispensem os artifícios a que recorrem as carnes alternativas?
Marion Nestle, tanto em seu livro, como nesta entrevista, diz que pretende acompanhar de perto a evolução deste setor. A promessa de algumas consultorias ligadas ao tema é de que tanto as carnes vegetais como as de laboratório poderão contribuir para a valorização da biodiversidade, a partir do uso de ingredientes locais e até de células de animais selvagens, cujo consumo é proibido.
Mas até aqui, ao menos, é difícil conceber como as virtudes de uma cozinha territorializada e diversa poderão conviver com sistemas produtivos agroindustriais cuja rentabilidade econômica deriva justamente da homogeneidade e da monotonia que estão na base de suas economias de escala. Ao menos pelo que mostraram até aqui, as carnes alternativas dificilmente poderão se converter em boas alternativas a nosso excessivo e predatório consumo de carnes.
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