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Ricardo Abramovay

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Dependência global de combustíveis fósseis russos fragiliza sanções a Putin

Operário checa canos da estação de compressão de gás próximo a Nesvizh, a cerca de 130 km de Minsk, na Belarus, em 2006 - Vasily Fedosenko/Reuters
Operário checa canos da estação de compressão de gás próximo a Nesvizh, a cerca de 130 km de Minsk, na Belarus, em 2006 Imagem: Vasily Fedosenko/Reuters

Colunista do TAB

03/03/2022 04h01

A criminosa invasão da Ucrânia pelo líder global da extrema-direita, Vladimir Putin, imprimiu dramática atualidade aos apelos contidos no relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas que acaba de ser divulgado. A mensagem do documento, elaborado por 270 cientistas — e apoiado em nada menos que 34 mil artigos publicados em revistas científicas de alta qualidade — é clara: o mundo não está reduzindo sua dependência dos combustíveis fósseis, apesar do compromisso, assumido em Paris e em sucessivos encontros posteriores, de que as emissões de gases de efeito estufa seriam cortadas pela metade até 2030 ou 2035.

E o que isso tem a ver com a inadmissível brutalidade do ataque russo e com a reação das potências ocidentais? Afinal, como todo mundo sabe, a comunidade internacional está respondendo de forma clara ao horror das imagens de destruição, isolando a Rússia da vida financeira global, bloqueando as relações com seus maiores bancos e, por aí, desestabilizando sua já combalida economia. As consequências já se fazem sentir na perda de valor dos dois maiores bancos do país, da própria moeda e na corrida bancária pela qual a população tenta salvar suas poupanças.

Mas o bloqueio tem uma exceção e é essa exceção que torna o relatório do IPCC um componente decisivo na explicação da capacidade de o mundo democrático se opor às ambições territoriais de um tirano que terá que ser julgado pela Corte Internacional de Haia: todos os pagamentos estão bloqueados, salvo aqueles que se referem ao fornecimento de energia e de algumas matérias-primas, sobretudo para a Europa.

A ciência, diversos grupos da sociedade civil e organizações multilaterais vêm alertando, há mais de trinta anos, contra os perigos (não só para o sistema climático, mas para a própria paz mundial) da dependência de fósseis no sistema energético, na mobilidade, na agricultura (sobretudo por causa dos fertilizantes nitrogenados), no aquecimento domiciliar e na produção industrial. Em vez de enfrentar seriamente esse perigo, o horizonte adotado tem sido o do gradualismo, com grandes bancos ainda financiando fósseis e as empresas do setor persistindo em seus investimentos, além do que seria necessário à transição, como a própria Agência Internacional de Energia tem insistido.

Quando um violador sistemático dos direitos humanos, com poder apoiado numa oligarquia odiosa, exprime ambições de domínio territorial contrárias às leis internacionais, a dependência global com relação aos fósseis sabota a capacidade de reação democrática. Exagero?

Nas 24 horas posteriores ao inadmissível reconhecimento, pela Rússia, dos territórios de Donesk e Lynask como "repúblicas populares" independentes, a União Europeia, os EUA e a Grã-Bretanha compraram do país agressor 3,5 milhões de barris de petróleo e produtos refinados no valor de US$ 350 milhões. Além disso, o Ocidente adquiriu (só nestas 24 horas) US$ 250 milhões de gás natural e dezenas de milhares de dólares em alumínio, carvão, níquel, titânio, ouro e outras commodities. Segundo Javier Blas, da Bloomberg, o total dessas compras (feitas depois que ninguém mais esperava um recuo do criminoso de guerra russo) chega a US$ 700 milhões. Num só dia.

Ah, mas agora as coisas mudaram, já que o cerco econômico ao agressor se intensificou. É verdade. Mas é verdade também que a energia (ou seja, os fósseis, aquilo de que o mundo quer e tem que se livrar para frear a atual destruição do sistema climático) está fora do bloqueio. É o que mostra a excelente "newsletter" de Adam Tooze, historiador da economia e diretor do Instituto Europeu da Universidade de Columbia. Tooze assinala que, em 24 de fevereiro, logo após o ataque russo, o presidente Joe Biden anunciou punições econômicas severas que atingiram as duas maiores instituições financeiras do país, o Sverbank e o VTB Bank. Suas transações internacionais chegam a US$ 46 bilhões diários e 80% delas são em dólar. Além disso, os ativos desses bancos nos EUA foram congelados. Não é irrelevante.

Mas Tooze mostra também que essa força draconiana não consegue vencer o poder fóssil. Ou, nas palavras do presidente Biden: "vocês sabem, em nosso pacote de sanções, temos um desenho específico para que os pagamentos pela energia continuem. Estamos monitorando de perto a oferta para evitar qualquer disrupção. Estamos coordenados com os maiores países produtores e consumidores de petróleo para garantir nosso interesse comum e assegurar a oferta global de energia".

Não é à toa que, contrariando todo o empenho do plano de descarbonização contido no Green New Deal de Biden, o American Petroleum Institute (que representa gigantes como Exxon, Chevron e Shell) está pressionando o governo norte-americano para ampliar a produção de combustíveis fósseis, quando a intenção governamental era de reduzi-la drasticamente.

A descarbonização da economia global não é apenas uma urgência socioambiental. Ela é também uma urgência democrática. Economias reprimarizadas, pouco diversificadas, concentradas em commodities agrícolas e minerais, além de não estimularem o aproveitamento dos talentos humanos necessários à diversificação, são palcos privilegiados para o poder de autocratas, que fazem da monotonia econômica a base não apenas da corrupção, mas do culto arcaico a supostos valores nacionais sob os quais a extrema-direita global tenta se afirmar no mundo.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL