Opinião: empresas de petróleo seguem produzindo alheias à crise climática
A inundação que paralisou e feriu São Paulo esta semana e as chuvas torrenciais que deixaram mortos e mais de 50 mil desabrigados no Espírito Santo e em Minas Gerais, no final de janeiro, vão se repetir e se intensificar. É claro que, como alerta o recém-lançado trabalho da McKinsey, uma das mais respeitadas consultorias globais, sobre os impactos físicos das mudanças climáticas, ninguém pode prever exatamente quando e onde "eventos climáticos extremos" vão ocorrer.
O que não se pode escamotear é que a atual taxa de aquecimento do planeta é a maior dos últimos 65 milhões de anos, segundo registros das pesquisas levadas adiante pelos especialistas na ciência que reconstitui e estuda o clima das eras passadas, a paleoclimatologia. De 1880 para cá, a temperatura global média já aumentou 1,1ºC e tudo indica que não haverá como evitar que a elevação prossiga até atingir 2,3 graus até o final do século 21.
Como resultado, serão cada vez mais frequentes ondas mortais de calor, precipitações extremas, furacões, secas e elevação do nível do mar. Aquilo que o relatório da McKinsey chama de sistemas socioeconômicos serão atingidos em cinco dimensões básicas. A primeira refere-se à capacidade de viver e de trabalhar. Na Índia, por exemplo, ondas mortais de calor (aquelas em que, por três dias, a temperatura fica acima da possibilidade de sobrevivência de um ser humano à sombra) serão 14% mais frequentes, pondo em risco 310 milhões de pessoas até 2030. Hoje, só 10% dos indianos possuem ar-condicionado. Sistemas alimentares (sujeitos a secas e inundações), ativos físicos (habitações, comércio e transportes em regiões litorâneas), infraestrutura (basta pensar na imagem da Avenida dos Andradas em Belo Horizonte, com água jorrando como se fosse uma fonte pelo canteiro central) e capital natural (geleiras no Ártico, florestas tropicais), estes são os outros quatro sistemas socioeconômicos atingidos pelos eventos climáticos extremos.
O planejamento contemporâneo não está preparado para enfrentar este problema cujos impactos tendem a ser maiores, como mostra o trabalho da McKinsey, nos países mais pobres. O montante de gases de efeito estufa (que respondem pela crise climática) já lançados na atmosfera faz do aquecimento global uma tendência incontornável. Mesmo que por um milagre, as emissões cessassem hoje, o aumento da temperatura global média chegaria a 1,5ºC. E como estamos longe dessa interrupção, o relatório preconiza que o sistema de tomada de decisões (privado e público) seja norteado por essa tendência, quer se trate das administrações municipais ou dos mercados financeiros. A experiência passada vai-se tornando cada vez menos útil para orientar decisões futuras, em virtude das incertezas ligadas aos efeitos locais e materiais dos eventos climáticos extremos.
Enxugar gelo
O relatório da McKinsey está totalmente voltado à urgência de nos adaptarmos à crise climática contemporânea, na infraestrutura urbana, na localização dos imóveis em que as pessoas habitam e na incidência dos riscos físicos trazidos pelo aquecimento global sobre os ativos financeiros e as apólices das companhias de seguro.
Mas todo esse trabalho pode se transformar em algo não muito diferente de enxugar gelo, se não houver um esforço gigantesco para descarbonizar a economia global. E, para isso, o relatório faz uma pergunta decisiva: quanto o sistema econômico ainda pode emitir para que a temperatura global média não se eleve além de dois graus durante o século 21? Qual o orçamento de carbono necessário para que os serviços prestados pelo sistema climático não entrem em colapso? A resposta consagrada entre os pesquisadores que publicam nas melhores revistas científicas do mundo é clara: para que tenhamos chance de limitar a dois graus a elevação da temperatura global média, ainda podemos emitir mil gigatoneladas de gases de efeito estufa. Se, como preconiza o Acordo Climático de Paris, assinado em 2015, não quisermos ir além de 1,5ºC, as emissões terão que ser menores: 480 gigatoneladas. Mil gigatoneladas corresponde a manter o que o mundo emite hoje durante os próximos 25 anos. O limite de 480 gigatoneladas exigiria zerar as emissões em doze anos.
Se tais limites não forem respeitados, aumenta enormemente o risco de transformar o planeta numa "casa quente". É que, quanto mais emissões, mais o Ártico se aquece e pode liberar um gás que se encontra em suas profundezas, o metano, cujo impacto sobre o sistema climático é ainda mais destrutivo que o derivado da queima de combustíveis fósseis.
Chega de queimar
E é aqui que se torna alarmante a informação contida no igualmente recém-lançado relatório da Agência Internacional de Energia. A queima de combustíveis fósseis é o principal componente na emissão de gases de efeito estufa. Só o petróleo e o gás correspondem a 42% de tudo o que a economia global emite. Destes 42%, nove por cento são emitidos na extração de petróleo e gás e 33% no seu uso, fundamentalmente para mobilidade de pessoas e cargas. A agricultura e o desmatamento também são importantes, mas o principal são os combustíveis fósseis.
Cabe então perguntar: qual o tamanho do esforço que as empresas responsáveis pela oferta de petróleo, gás e carvão estão fazendo para impedir que o produto por elas oferecido à sociedade destrua o sistema climático? A resposta da Agência Internacional Energia não poderia ser mais chocante: este esforço é ínfimo.
Mais de 99% dos investimentos das empresas de petróleo e gás são feitos nos produtos que elas sempre ofereceram. Apesar de toda a retórica publicitária em torno de "energias inteligentes", de compromisso com o futuro e de fontes renováveis, estas empresas estão contribuindo de forma decisiva para agravar a crise climática, em vez de caminhar no sentido de sua resolução. As energias renováveis modernas, ao menos até aqui, são para elas algo que não faz parte de seus planos estratégicos. Absorvem menos de 1% de tudo o que investem.
É claro que essas empresas não poderiam subitamente parar de produzir petróleo, gás e mesmo carvão, uma vez que 80% da energia da qual depende a espécie humana ainda vem de fósseis. O que chama a atenção, porém, é que elas continuam planejando expandir sua produção como se a crise climática já não estivesse tragicamente entre nós.
Não há dúvida que os combustíveis fósseis estão na raiz do extraordinário aumento de riqueza e de bem-estar material que marca a história do Século 20. A energia contida em três colheres de petróleo equivale ao trabalho de uma pessoa durante oito horas. A eficiência é impressionante. Em função dessa eficiência, o mundo tornou-se completamente dependente do petróleo, do gás e mesmo das usinas elétricas a carvão. Agora, porém, tanto a crise climática como a oferta de energias renováveis cada vez mais baratas mudam o cenário e colocam a sociedade diante da urgência da transição energética.
A transição não será e não pode ser de uma hora para outra. Substituir a frota de carros e caminhões movida a gasolina e diesel por veículos elétricos ou abastecidos por combustíveis líquidos de origem vegetal é algo que leva tempo. Enquanto isso, a demanda por fósseis permanece e em alguns casos aumenta. Não é de se estranhar que, apesar da crise climática, as petroleiras continuem investindo, pois é forte a demanda por seus produtos.
O problema é que seus investimentos, pelo que mostra a Agência Internacional de Energia, estão muito além daquilo que cabe no orçamento carbono necessário para que se evite o colapso do sistema climático. É verdade que em 2019 estes investimentos foram um terço menores que o pico atingido em 2014. Ainda assim, foram US$ 480 bilhões. Parte ínfima desse total voltou-se aos renováveis. Pior: nas projeções das principais empresas petrolíferas do mundo (tanto as estatais como as transnacionais), o cenário é de um aumento na demanda por combustíveis fósseis ao menos até 2040. Por isso, as companhias de petróleo pretendem investir tanto nos poços já existentes, como na exploração de novos poços, um montante que corresponde a nada menos que o dobro do cenário que a Agência Internacional de Energia chama de "desenvolvimento sustentável".
Enquanto as empresas pretendem investir anualmente US$ 630 bilhões anuais no período 2021/25, ampliando o total para quase US$ 800 bilhões entre 2036 e 2040, o cenário de desenvolvimento sustentável consistiria em partir de investimentos pouco superiores a US$ 500 bilhões entre 2021 e 2025 reduzindo este montante para pouco mais de US$ 350 bilhões entre 2036 e 2040.
E aqui vem uma informação fundamental do relatório da Agência Internacional de Energia. Se o mundo conseguir adotar uma trajetória que evite a intensificação da crise climática, parte imensa do investimento feito e planejado pelas empresas de petróleo e gás simplesmente não terá retorno. Num cenário de ampliação na oferta de alternativas aos fósseis, nada menos que US$ 900 bilhões seriam simplesmente desperdiçados, ou seja, não obteriam retorno econômico. Se no cálculo forem incluídas também as refinarias, este total pode chegar a US$ 1,2 trilhão.
Esta é uma das razões econômicas centrais que motivou uma aliança entre os maiores fundos de pensão e grandes seguradoras, com ativos na casa de US$ 2,4 trilhões, em torno do compromisso de que sua carteira de investimento tivesse emissões zero até 2050. São inúmeras as iniciativas vindas tanto de governos (como a União Europeia, que se compromete a neutralizar suas emissões até 2050) como as de organizações financeiras (como a Força-Tarefa em Transparência Financeira ligada ao Clima, TCFD, na sigla em inglês) para acelerar a transição energética. As iniciativas se apoiam na redução drástica de preços das renováveis modernas, nos últimos dez anos, e num conjunto de avanços tecnológicos que permitiriam traçar o horizonte em que o bem-estar global fosse cada vez menos dependente dos fósseis.
O mundo da energia fóssil contemporânea, entretanto, está vivendo algo que lembra a corrida maluca do coelho de Alice do País das Maravilhas: para que seus investimentos sejam rentáveis, é necessário sacrificar o próprio sistema climático. Como ninguém sabe qual o montante de fósseis que a humanidade ainda vai consumir antes de acelerar sua transição energética, cada empresa se empenha em garantir aquilo que lhe permitirá participar do bolo, apesar das evidências de que são cada vez maiores as chances de o tiro sair pela culatra até para seus próprios acionistas. Só em janeiro e fevereiro de 2020, em Minas Gerais, no Espírito Santo e em São Paulo, já são dezenas de milhares as vítimas dessa corrida maluca. Esse é o momento em que Alice pergunta ao coelho: como saio daqui? Ao que o coelho responde: depende para onde você quer ir...
*Professor Sênior do Instituto e Energia da USP. Autor de "Amazônia: por uma economia do conhecimento da natureza" (Ed. Elefante/Outras Palavras). Twitter: @abramovay
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