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Desmatamento na Amazônia é ideológico, diz economista Ricardo Abramovay

O desmatamento e as mudanças climáticas podem afetar a regeneração das áreas afetadas pelo fogo - Getty Images
O desmatamento e as mudanças climáticas podem afetar a regeneração das áreas afetadas pelo fogo Imagem: Getty Images

Kaluan Bernardo

Do TAB

02/01/2020 04h01

Entre 1 de agosto de 2018 e 31 de julho de 2019 foram desmatados 9.762 km² na Amazônia Legal, segundo levantamento do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). O índice é o maior em dez anos e representa alta de 29,5% em relação ao mesmo período do ano anterior. O recorde de desmatamento é alcançado no mesmo ano em que outras duas tragédias ambientais chocaram o país: o rompimento das barragens em Brumadinho (MG) e o surgimento de enormes manchas de óleo no mar, que se espalharam pelo litoral nordestino.

O governo federal ainda foi criticado por barrar negociações na Cúpula do Clima, viu as verbas internacionais do Fundo Amazônia serem paralisadas, atacou cientistas como Ricardo Galvão (ex-diretor do Inpe e eleito um dos principais nomes da ciência em 2019 pela revista Nature), além de ONGs e ativistas ambientais, como Leonardo DiCaprio e Greta Thunberg (eleita personalidade do ano pela revista Time).

Em novembro, o presidente Bolsonaro disse que o desmatamento no Brasil "é cultural" e não iria acabar. Para Ricardo Abramovay, professor do Instituto de Energia e Ambiente da USP, o discurso do presidente Bolsonaro e sua equipe chancelam e impulsionam o desmatamento.

Abramovay lançou, em outubro, o livro "Amazônia: por uma economia do conhecimento da natureza". Ao longo de 112 páginas, o pesquisador traz dados empíricos para defender que a Amazônia pode crescer economicamente e de forma sustentável. Na obra, ele mostra que a destruição florestal não só tem consequências ambientais e sociais, como também privam o Brasil de desenvolver uma economia rica.

Dividido em pequenos tópicos, o livro mostra que o agronegócio e a pecuária não dependem do desmatamento da Amazônia — em sua maior parte feito de forma ilegal. Além disso, diferentemente das afirmações de Bolsonaro, as ONGs têm papel essencial na preservação amazônica e boa parte do mundo está na contramão do Brasil, preservando cada vez mais suas florestas.

Confira abaixo trechos da entrevista de Ricardo Abramovay ao TAB.

- No livro você diz que, para a Amazônia crescer, não é necessária uma exploração predatória. Por quê?

O Brasil foi o país que, isoladamente, deu a maior contribuição na luta contra as mudanças climáticas entre 2004 e 2012, quando o desmatamento caiu 80%. Nesse período a produção agropecuária aumentou. Em dois terços dos casos, o desmatamento resulta em terras abandonadas ou pastagem de baixíssima produtividade. É um sacrifício de recursos que poderiam ser usados para a produção inteligente de riquezas para uma produção de baixa ou nenhuma qualidade. Esse sacrifício é muito prejudicial ao país e à Amazônia.

- Esse dado sugere que, ao contrário do senso comum, não é o grande agronegócio que estaria interessado no desmatamento. Quem ganha com o desmatamento, então?

É uma questão muito difícil de responder, pois há muito pouca pesquisa sobre o tema. Em princípio, o grande agronegócio realmente não está interessado no desmatamento. E isso se mostra nas entrevistas do [Marcello Brito] presidente da Abag (Associação Brasileira do Agronegócio), que diz isso explicitamente.

Ao mesmo tempo, a Aprosoja (Associação Brasileira dos Produtores de Soja) abandonou em outubro de 2019 a moratória da soja — um acordo para as tradings não comprarem soja de terras desmatadas depois de 2018. O argumento da associação foi que, ao recusar a compra de soja em terras recentemente desmatadas, as tradings estariam levando adiante práticas anticoncorrenciais.

Portanto, não são apenas pequenos produtores que manifestam interesse em persistir desmatando. Produtores representados pela Aprosoja, por exemplo, também manifestaram na prática interesse em produzir soja com desmatamento.

Há também os canavieiros que passaram a defender a produção de cana nas regiões do Pantanal e da Amazônia. Tecnicamente é quase inviável a produção em tais locais. O que justifica esse interesse, então? Minha interpretação — ainda que sem elementos empíricos para fundamentá-la — é que essa é uma estratégia de natureza patrimonial. Trata-se de participar do processo de privatização de terras públicas por meio de invasão de áreas indígenas, de reservas extrativistas ou terras devolutas.

O agronegócio sempre alegou que a agricultura brasileira se expandiu nos últimos 30 anos muito mais em função da produtividade do que da ocupação de novas terras. Se fosse uma estratégia para produção, a ideia seria converter áreas de pastagem em áreas de lavoura, como aconteceu em São Paulo com a cana de açúcar. Mas como estratégia fundiária, de ocupação de novas terras, a lógica é outra.

Ricardo Abramovay, em evento de cinco anos do UOL TAB - Lucas Baptista/ UOL - Lucas Baptista/ UOL
Ricardo Abramovay é estudioso da Amazônia
Imagem: Lucas Baptista/ UOL

- Bolsonaro diz que, quando outros países falam em defender a Amazônia, estão ameaçando nossa soberania. Mas, manter um baixo desmatamento é também uma questão de soberania para a União permanecer dona dos territórios?

Sim. Há um processo ideológico e cultural no processo de destruição que a Amazônia está sofrendo com a visão que o Planalto tem sobre a Amazônia.

As elites brasileiras, com raríssimas exceções, nunca levaram a Amazônia a sério. Sempre encararam como uma espécie de almoxarifado onde você vai buscar commodities e energia barata. Com o governo Bolsonaro, essa situação foi levada ao extremo, com a crença de que precisam derrubar a Amazônia para o Brasil e o mundo não passarem fome. Não é apenas algo oportunista e movido por interesses comerciais, é uma crença das pessoas que estão no Palácio. Eles acreditam que quem quer conservar a Amazônia não quer o progresso do país.

É uma visão de mundo que tem a trágica consequência de estimular a violência contra as populações tradicionais na Amazônia e que é a base para a destruição de recursos que poderiam estar sendo usados em benefício do Brasil e da humanidade.

- Outro argumento usado pelo governo federal é que o desmatamento na Amazônia já foi maior. O livro destaca que, embora isso seja verdade, houve uma resposta em 2008.

Quando o Brasil e o mundo perceberam que a Amazônia estava sendo destruída em uma escala inadmissível, houve uma resposta. Isso foi a partir de 2008, nas gestões tanto da Marina Silva e do Carlos Minc [ex-ministros do Meio Ambiente]. Nesse período, destaca-se a política de comando e controle — a repressão a práticas ilegais, presença ostensiva de agentes públicos para prevenir o desmatamento, a expropriação de rebanhos criados em áreas proibidas, autorização de queima de equipamentos etc. A outra é a coordenada com a atuação de órgãos estaduais. Isso fez com que o desmatamento caísse de 27 mil km² em 2004 para menos de 5 mil km² em 2012.

O Brasil foi quem deu a maior contribuição isolada para a luta contra as mudanças climáticas. Isso é reconhecido inclusive pelo IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, na sigla em inglês). E é daí que vem, inclusive, a autoridade do Brasil em conferências climáticas internacionais. Em parte pela competência da antiga diplomacia brasileira e em parte porque houve um feito impressionante.

Mas o que aconteceu a partir de 2012 é que esse índice de 5 mil km² de desmatamento (que ainda era um número grande) em vez de continuar reduzindo, aumentou.

No último ano, o discurso do presidente Bolsonaro, do Ricardo Salles (ministro do Meio Ambiente) e do Ernesto Araújo (ministro das Relações Exteriores) estimulou a volta de atores privados para áreas em que haviam sido proibidos de manter suas atividades e ocupações. Isso foi um sinal de que vale a pena arriscar desmatar.

Uma das coisas mais tragicamente interessantes nesse sentido é que o desmatamento até então ocorria pouco em áreas protegidas porque a expectativa de legalização em terras protegidas era baixa. Mas no último ano, com o endosso do discurso do Planalto, só nas terras indígenas o desmatamento aumentou 85%. Isso porque o presidente diz que índio não precisa de muita terra etc. É uma sinalização de que se você invadir áreas indígenas, a sua invasão ainda vai ser reconhecida pelo presidente.

- Você diz que esse crescimento do desmatamento já acontecia desde 2012. Ao que se devia no período de 2012 para cá e o que muda agora com o Bolsonaro, além do discurso?

O fato de a trajetória de baixa ter sido interrompida em 2012 não significa que, desde então, houve um crescimento avassalador. Ainda assim, era preocupante que o Brasil ainda desmatasse tanto. Isso acontecia por um comportamento vacilante de repressão ao desmatamento, inclusive por parte do governo Dilma.

Mas nunca houve, em nenhum governo democrático brasileiro, a ideia de que pode desmatar com o argumento de que quem estaria protegendo a Amazônia seriam os interesses estrangeiros e a indústria da multa. Isso nunca tinha acontecido na história democrática. E a consequência é, além da mudança de pensamento, o completo desmantelamento dos órgãos de fiscalização. Isso também nunca aconteceu antes.

Além de ilegal, o desmatamento é criminoso. E, como é comum no crime, os malfeitores andam armados. Quando os fiscais vão combater essa ilegalidade, eles precisam de proteção. Mas o governo Bolsonaro eliminou essa proteção. Os instrumentos pelos quais a fiscalização poderia acontecer estão desmantelados.

Esse desmatamento ilegal organizado é banditismo. Não é o sujeito miserável que está morrendo de fome e vai ocupar a terra para comer. A grilagem é algo organizado, pago. É um investimento que só pode ser bem sucedido se for apoiado na criminalidade.

Operação de Fiscalização do Ibama flagra desmatamento na Floresta Nacional do Jamanxim, onde a Câmara dos Deputados votou para reduzir a área de proteção  - Vinícius Mendonça/Ibama - Vinícius Mendonça/Ibama
Floresta Nacional do Jamanxim, onde a Câmara dos Deputados votou para reduzir a área de proteção
Imagem: Vinícius Mendonça/Ibama

- Bolsonaro também acusou países europeus, como Alemanha, França e Noruega, de não cuidarem das próprias florestas. Mas o livro mostra que, na verdade, o mundo inteiro está preservando mais suas florestas e estamos na contramão.

É uma tendência do próprio processo de desenvolvimento. Uma vez atingido certo grau de riqueza, os países tendem a proteger suas riquezas naturais e a explorá-las de maneira não destrutiva. Isso tem raízes históricas. Além disso, as sociedades tendem a estimular a formação de grandes parques, como acontece nos Estados Unidos, França, Japão. Você vai a Paris e vê uma região metropolitana cercada de florestas.

Uma característica importante das sociedades desenvolvidas é o respeito que hoje elas têm por áreas naturais. Não é verdade que qualquer um pode desmatar o que queira. No século 19 houve muito desmatamento, mas não podemos nos inspirar no mundo de 200 anos atrás, mas sim no de hoje.

O raciocínio de quem diz que a nossa legislação é a mais avançada do mundo está fazendo uma comparação com o mundo do século 19. Se compararmos nossa legislação atual com a europeia ou japonesa, por exemplo, nós temos muito a aprender. A França tem um terço da sua superfície coberta por florestas.

- Outro alvo de Bolsonaro foram as ONGs, afirmando que elas interferem muito na região. Essas críticas encontram algum respaldo na realidade?

As grandes ONGs existentes na Amazônia, como o ISA (Instituto Socioambiental), o Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), o Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente na Amazônia), Imaflora (Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola)... Estão dentro da região e acompanhando o trabalho.

Elas têm uma ligação muito forte com as populações locais, sobretudo as populações tradicionais. Além disso, essas organizações são produtoras de conhecimentos muito importantes. É o caso, inclusive, do Greenpeace, mesmo que não esteja dentro da região. Essas ONGs publicam nas melhores revistas internacionais voltadas a temas de ecologia, ciências sociais etc. Elas estão contribuindo para a produção de conhecimento na Amazônia. Por fim, essas ONGs têm a mentalidade de estímulo ao empreendedorismo. Não são organizações anticapitalistas. Elas estão profundamente interessadas em empresas que possam levar adiante negócios voltados ao desenvolvimento sustentável.

Para que a bioeconomia possa ter algum futuro na Amazônia, precisamos não só da floresta em pé, mas também da associação entre conhecimentos tradicionais e científicos. E são as ONGs quem fazem essa ligação. O ativismo é componente essencial do desenvolvimento sustentável da Amazônia.

Essa importância das ONGs só não é reconhecida por razões ideológicas. Bolsonaro já declarou explicitamente, na campanha e enquanto presidente, de que ia acabar com o ativismo no Brasil.

O trabalho recente do Instituto Escolhas, por exemplo, tem a proposta de transformar a Zona Franca de Manaus em uma espécie de Vale do Silício da bioeconomia. Conhecemos muito pouco os potenciais da bioeconomia, porque até aqui toda a lógica produtiva da Amazônia foi extrativista, não de conhecimento da natureza.

Ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles posa para foto com indígenas parecis, no Mato Grosso - Reprodução - Reprodução
Ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles posa para foto com indígenas parecis, no Mato Grosso
Imagem: Reprodução

- Quais são as atitudes mais emergenciais para irmos na direção do desenvolvimento sustentável da Amazônia?

O primeiro passo é uma sinalização clara, tanto em discurso quanto em ações do governo federal, no sentido de interromper as invasões de terras públicas, as invasões de terras indígenas em unidades de conservação. É preciso reprimir seriamente as atitudes de violência contra populações tradicionais e ativistas que estão trabalhando na Amazônia.

E, por fim, é preciso estimular um ambiente de negócio em que populações tradicionais, empresários e cientistas descubram oportunidades que valorizem a biodiversidade na Amazônia.